Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Gradualmente, André foi deixando de aparecer. Vendo que João Pedro nada produzia, o marchand
desmoralizou e abandonou o antigo protégé à sua rotina solitária. Ainda falavam ao telefone, de
tempos a tempos, mas André já não o pressionava para pintar, convicto de que era inútil insistir.
João Pedro passeava muito com o seu cão. Davam várias voltas ao quarteirão, caminhando a par e
par, sem trela. Regressavam a casa, ele sentava-se no sofá da sala a olhar para a parede e a fumar um
cigarro, o cão deitava-se a seus pés e dormitava, mas seguia-o pela casa se ele se levantava e ia a
outra divisão.
Agora que André andava mais desaparecido, João Pedro visitava todas as tardes um mecânico que
tinha uma garagem ali perto e que, em tempos, lhe resolvera um problema no motor do seu carro, que
se recusava a arrancar. O mecânico era um romeno estranho que só falava meia dúzia de palavras em
português. Isso agradava a João Pedro, pois não o procurava para conversar, mas tão só pela
companhia.


Sentavam-se em banquinhos à porta da garagem, o mecânico trazia de dentro duas latas de cerveja
fresca e ficavam ali a beber, com o cão deitado por perto. O romeno sofria de uma doença
relativamente obscura, de seu nome Síndrome de Tourette, que se manifestava por tiques — o homem
fazia caretas, pigarreava e estalava a língua a todo o momento — e pela necessidade imperiosa e
irresistível de dizer obscenidades, muitas vezes nas situações mais inconvenientes. Esta última
característica tinha o nome científico de coprolalia. João Pedro não sabia nada disto, evidentemente,
mas a ele, que nunca ouvira falar da doença, não o incomodavam os tiques do homem, e, quanto às
obscenidades, só desconfiava do que se tratava pelo tom dos palavrões que o mecânico resmungava
em romeno, embora não percebesse o que ele dizia. Já o mecânico, usufruía dessa oportuna vantagem
de falar uma língua estranha e, assim, livrar-se de sérios sarilhos, pois, certamente, não contaria com
a mesma benevolência dos transeuntes desconhecidos que parecia insultar se o fizesse em português.


Faziam um par singular, o pintor ensimesmado e o mecânico incontinente verbal. Chocavam as suas
latas de cerveja num brinde negligente e bebiam e fumavam em silêncio. Os desconchavos
ocasionais, intempestivamente disparados pelo romeno, mereciam um sorriso condescendente de
João Pedro. Terminada a cerveja, dizia até amanhã, levantava-se, o cão levantava-se, o mecânico
levantava-se, ia-se embora acompanhado pelo animal, enquanto o romeno ia para dentro debruçar-se
sobre o motor inútil de um carro moribundo. João Pedro voltava então para casa a ponderar que
precisava de recomeçar a pintar, que era o que gostava genuinamente de fazer. Amanhã, pensava, mas
no dia seguinte haveria de deixar passar o tempo e, quando desse por isso, o dia chegaria ao fim sem
ter feito nada de produtivo.

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