Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

Havia em Clara um sentimento corrosivo que fora crescendo intimamente com o passar dos anos,
mas que ela nunca verbalizara nem tampouco quisera admitir para si própria que pudesse pensar tal
coisa do marido. Era um pensamento recorrente que afastava do espírito, como se sacudisse uma
mosca incómoda que teimasse em voar à volta da cabeça dela com o seu zumbido penetrante e
perturbador. Mas, ultimamente, esse pensamento horrível emergia com mais frequência, vinha atrás
dos momentos de tensão, quando ela tentava convencer João Pedro a ser mais dinâmico, a libertar-se
do isolamento limitador do seu quartinho e a abrir-se ao mundo. Antes, Clara irritava-se com o que
interpretava como uma indiferença dele em relação à sociedade em geral, mas agora o seu sentimento
era mais profundo, ficava triste e desencantada.
Pronto, é isto, ele é uma desilusão!, admitiu, finalmente, depois da visita de André a João Pedro.
Foi chocante reconhecer uma ideia tão negativa sobre o seu marido e pai dos seus filhos e, ao fazê-
lo, estava a assumir a convicção de que ele era um falhado sobre todos os aspectos: profissional,
social e familiar.


Clara tinha a justa impressão de que João Pedro não evoluíra naqueles anos todos e ficara bastante
aquém do sucesso que ela lhe augurara e que fora — não podia negá-lo — o maior atractivo para se
apaixonar por ele. Esperara muito mais de João Pedro. Ainda na universidade, convencera-se de que
ele era um génio e teria, inevitavelmente, um sucesso transcendente. Ela via-o tão calado e confundia
silêncio com ponderação. Quando começaram a namorar, sentia orgulho em ser a companheira do
rapaz mais bem-sucedido da faculdade. Achava a timidez de João Pedro o reflexo de uma mente
criativa, alheada do que a rodeava por estar em constante congeminação de projectos sublimes que
lhe desviavam a atenção das banalidades quotidianas.
Claro que, com ela, João Pedro revelara-se muito mais conversador. Levava-a a ver os seus
quadros e falava muito do plano que tinha para ser um grande pintor; ela bebia-lhe as palavras e não
lhe passava pela cabeça, nem por um instante, que nada daquilo se concretizasse. Pensava que João
Pedro era a pessoa mais segura e determinada que conhecia, com ideias esclarecidas e sem uma
sombra de dúvida do caminho a trilhar para a glória. Só teria de o seguir. Parecia-lhe tudo tão fácil,
tão simples e óbvio, não previra qualquer entrave à felicidade. Estava enlevada, andava nas nuvens.
Estava era burra, pensava agora, desmoralizada e incrédula com o rumo que a vida dele tomara
afinal.


Desde que aceitou a verdade sobre João Pedro, Clara iniciou uma nova etapa psicológica, que
consistia em desenvolver e deixar assentar uma ideia mais estruturada do fracasso com todas as suas
graves implicações. Uma vez interiorizada essa ideia, ela deixou de se sentir culpada por ter pouca
consideração pelo marido. Analisava-o friamente, em perspectiva. Afinal de contas, pensava,
tratava-se de ser honesta consigo mesma e não negar os factos.
Fazia-lhe muita confusão que João Pedro se satisfizesse com a mediania e não estivesse
minimamente preocupado por os seus quadros já não se venderem. Ele tinha potencial, melhor, ele
tinha um dom, pintava bem como poucos, mas estragava tudo por ser anti-social e recusar-se a ouvir
os experientes conselhos de André.
Como se não bastasse a sua falta de sensibilidade comercial, ainda batia o pé a quem o queria
ajudar. Clara também poderia fazer muito por ele nesse campo, pois desenvolvera um agudíssimo
instinto autopromocional naqueles anos todos a trabalhar num ateliê cheio de egos enormes, e, até

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