decidiu levar as crianças e a empregada para a ajudar, assim seria. O apartamento não lhe
interessava nada e, quanto às crianças, não saberia tratar delas com a dedicação e a competência que
necessitavam. Deviam ficar com a mãe.
Caído num profundo estupor, João Pedro atravessou os dias seguintes em absoluto transe,
assombrado com a decisão drástica e imprevista de Clara. Foi abalado por um terramoto emocional
demasiado violento para lhe permitir processar aquela estonteante surpresa. Era excessivo para ele,
não conseguia organizar os pensamentos, dar uma ordem lógica aos acontecimentos, sentia-se
estúpido. O que se passara afinal? Como tinham chegado àquele ponto sem ter dado por isso?
Perguntava-se o que fizera, o que dera a Clara para estar furiosa como nunca a tinha visto?
Na verdade, não era tanto o que fizera, como ela tentara explicar-lhe, mas o que não fizera.
Mesmo assim, João Pedro não se sentia agastado com ela, não a recriminava, estava simplesmente
espantado, atordoado e triste. Em contrapartida, Clara dissera-lhe que nem o queria ver, e essa
rejeição violenta, senão mesmo de repulsa, afigurava-se-lhe injusta, insensata, extemporânea.
Sim, João Pedro tinha a noção dos seus defeitos, era o maior crítico de si próprio e o primeiro a
reconhecer — mas só intimamente — a timidez quase paralisante e tão limitadora que o levava a
isolar-se e a evitar o contacto com desconhecidos. Nos piores dias, considerava que tinha um
carácter pusilânime e sem remédio, e ponderava se não estaria condenado à solidão. A solidão
confortava-o, dava-lhe segurança, embora também o deprimisse, mas era mais forte do que ele, era
uma luta interna permanente para contrariar a vontade de se esconder do mundo. Porém, se Clara o
conhecia melhor que ninguém e tinha consciência dos seus problemas, não devia apoiá-lo
incondicionalmente em vez de se afastar?
Como é evidente, João Pedro desconhecia que Clara já percorrera um longo, infrutífero e solitário
caminho até chegar ali. João Pedro não tinha noção do quanto ela se esforçara para ele mudar, dos
suspiros que soltara nas suas costas sempre que ele escolhia ignorar os conselhos dela. Se,
inicialmente, Clara era subtil nas sugestões que lhe fazia, ultimamente já era bastante mais enfática.
Ele não fazia ideia de que os conselhos de Clara fossem tão importantes para ela, na verdade, até
mais do que para ele, pois Clara fazia depender o futuro da forma como ele reagisse na circunstância
actual, enquanto para João Pedro os conselhos de Clara eram apenas sugestões para o ajudar, quer
ele as seguisse, quer não.
O desencontro entre João Pedro e Clara ficou, portanto, a dever-se em grande medida a uma falha
de comunicação. Ela queria obrigá-lo a mudar, mas nunca lho disse directamente, senão através de
conselhos que ele não levava a sério por serem contra a sua natureza. Para Clara, se uma pessoa
andava como um pato e grasnava como um pato, então era um pato. Já para João Pedro essa lógica
não era assim tão óbvia. Contudo, se ele tivesse sabido a tempo a importância de ser um pato, ter-se-
ia esforçado ao máximo para ser o pato que a faria feliz, só para não a perder.
A vida está pejada de imponderáveis que operam mudanças súbitas e decisivas para o futuro, em
geral desencadeados por outras mudanças acidentais a montante. Uma interrupção intempestiva da
rotina habitual desvia-nos do percurso preestabelecido, atira-nos para o desconhecido e as coisas
acontecem. Na semana em que João Pedro ficou sozinho e perdido, deram-se dois desses
acontecimentos fortuitos que haveriam de se revelar determinantes na vida dele.