Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Enquanto vagueava pelo bairro ao sabor de uma caminhada reflexiva de fim de tarde — hábito que
só adquirira depois de Clara o ter deixado —, João Pedro deu por acaso com um grande cartaz à
porta de uma sala de conferências que ostentava a extraordinária fotografia de um homem calvo,
engalanado por grandes bigodes com umas soberbas pontas retorcidas. João Pedro estacou ali a
observar com um misto de curiosidade e espanto aquela desusada imagem do vetusto cavalheiro.
Pareceu-lhe um pensador erudito com uma mensagem reveladora para transmitir — interpretação
correcta, aliás, dado que devia ter sido essa mesma a intenção de quem lhe tirara a fotografia. Visto
assim de repente, tudo naquele homem transportava um observador desprevenido para algures num
tempo antigo, talvez dos olvidados finais do século dezanove. Qual antepassado ilustre fixado pelo
daguerreótipo centenário, este homem inesperado apresentava-se num magnífico fato de fazenda
escura, de corte antiquado. Era do tipo roliço, constrangido num colete apertado até ao último botão,
onde tinha a mão esquerda pendurada pelo polegar enfiado no bolsinho, dando ares de grande à-
vontade. Tinha depois um livro da sua autoria na mão direita, com o título Caos: O Motor do
Progresso.
E, a encimar o cartaz, lia-se em grandes letras rebuscadas o seu impronunciável nome
escandinavo: Theophilus Engelbrecht.
Não havia ninguém, mas dois focos de luz incidiam sobre um tapete vermelho, muito digno,
estendido no chão para fora da porta dupla escancarada, sugerindo a língua carmim de uma boca
aberta. E João Pedro sentiu-se compelido a deixar-se engolir para o interior escuro que sucedia os
focos que iluminavam o exterior. Entrou.


Passou pelo meio de duas pesadas cortinas de veludo cor de cereja, seguiu com passos cautelosos
por um curto e cavernoso corredor, desembocou numa sala muito larga, onde parou à espera que os
seus olhos se habituassem à obscuridade densa que o impedia de se orientar.
Ao fundo, banhado numa ilha de luz amarela, descobriu o homem do cartaz sentado a uma mesa
coberta por uma toalha castanha, a falar para um microfone, perante uma vasta plateia de cadeiras
vazias. Um homenzinho lúgubre, engravatado e de fato preto, surgiu subitamente da penumbra. Trazia
um prospecto que enfiou na mão de João Pedro, enquanto o informava que o mestre Theophilus
Engelbrecht iniciara agora mesmo a sua maravilhosa palestra, de modo que ainda ia muito a tempo,
se quisesse acompanhá-lo.
João Pedro foi atrás do solícito assistente, que poderia muito bem ser um pesaroso empregado de
uma agência funerária. Este ofereceu-lhe um lugar mesmo em frente do orador, apenas com três filas
de cadeiras vazias de permeio. O pressuroso assistente retirou-se, deslizando pela escuridão. João
Pedro olhou embaraçado para os lados e reparou que afinal não era o único presente. Havia mais
umas cinco ou seis pessoas dispersas pela plateia. Alguns metros à sua esquerda, uma senhora de
cabelos grisalhos escutava atentamente, inclinada para a frente com uma mão apoiada num carrinho

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