de compras de duas rodas que encostara à cadeira. À direita, viu um idoso de olhos fechados a
cabecear um sono leve.
O mestre Theophilus Engelbrecht perorava, num português carregado de erres, sobre a natureza
humana. Era absolutamente necessário perceber a natureza humana para compreender a dinâmica das
sociedades, dizia. «O Homem não progrride na félicidade, um homem fêliz é um homem acomodado,
um serr inútil, não se esforrça parra nada. Assim são tambêm as sociedades. As sociedades
prrecisam de grrandes convulsões parra se desenvolverrem. As manifestações, as revoltas
popularres, as catastrrófes, são o ôxigénio do prrogrresso.»
O mestre Theophilus Engelbrecht fez uma pausa para inspirar profundamente esse oxigénio
providencial, passou um lencinho branco na testa perlada de suor, tomou um pouco de água. Depois
continuou a defender com afinco a sua tese de que não havia progresso sem caos, insistindo amiúde
em que o medo da fome é que levava as pessoas a trabalharem mais e melhor. As crises económicas,
a insegurança no emprego, a inquietação, eram poderosos estímulos da criatividade, dizia. Agora
mesmo, em Portugal, vivia-se uma crise sem precedentes e este país, que sempre negligenciara a
expansão comercial para lá das fronteiras, voltava-se de uma vez para o exterior e as exportações
cresciam gloriosamente. O português, apertado pelas infelizes circunstâncias, procurava caminhos
alternativos para se salvar da ruína.
João Pedro escutou interessado a prelecção do mestre. No final, acenderam-se as luzes e o fúnebre
assistente reapareceu com uma pilha de livros que depositou em cima da mesa, anunciando que, em
seguida, o mestre Theophilus Engelbrecht iria privilegiar o excelentíssimo público com um raro
autógrafo na sua obra, que todos poderiam adquirir. João Pedro juntou-se obedientemente à fila, logo
atrás da senhora que puxava o carrinho de compras, e, chegada a sua vez, o mestre Theophilus
Engelbrecht ergueu os olhos, perguntou-lhe a sua graça e interessou-se pelo seu trabalho. Quis saber
o que fazia.
— Sou um pintor de quadros que já ninguém quer comprar — disse João Pedro, pondo um sorriso
fatal.
— Ah! A arrte é semprre a prrimeirra vítima da falência. Uma barrbárridade! Mas há que
prrocurarr caminhos, há que prrocurarr!
Enquanto caminhava de regresso a casa com o livro de Theophilus Engelbrecht na mão, João Pedro
ia ponderando a teoria do mestre e em como ela se podia aplicar ao seu caso pessoal. «Uma
barrbárridade! Mas há que prrocurarr caminhos, há que prrocurarr!», ia a dizer, imitando em voz
baixa e com ironia o sotaque arranhado do mestre. Mas, enfim, havia que encarar os factos: estava
falido, não vendia um quadro, Clara saíra de casa e levara os miúdos, deixara-o sozinho, não tinha
ninguém! «Uma barrbárridade!», repetiu, descoroçoado, andando cada vez mais devagar, até parar
sem se dar conta. «Foda-se!», exclamou, chocado.
Desde que Clara partira, anunciando-lhe que tomara uma decisão definitiva — não, ela dissera de-
fi-ni-ti-va, assim mesmo, marcando bem todas as sílabas —, era a primeira vez que João Pedro
interiorizava absolutamente e sem reservas mentais a sua posição. Até agora, evitara enfrentar o
problema, afastara-o do espírito com a vaga e plácida ideia de que se tratava só de uma crise
passageira. Mas, subitamente, caiu em si e percebeu que não havia nada de circunstancial na sua