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Desde o momento em que saiu de casa nessa manhã, João Pedro deixou de ser o mesmo de sempre.
O homem complexo que, ao longo de anos, fora arquitectando laboriosamente uma mentalidade
fugidia, isolada, anti-social, que se fora afundando psicologicamente, fechando-se ao mundo,
seguindo, sem ter plena consciência disso, um instinto de autodefesa, esse homem deixou de existir
no instante em que se deparou com Cristiane à porta do prédio.
Se — mais uma vez — é certo que uma pessoa não muda radicalmente de um dia para o outro, e
muito menos de um segundo para o outro, também é verdade que uma experiência traumática pode
levar-nos a encarar o mundo de maneira diferente e, sim, fazer-nos mudar. Um problema de saúde
grave ou um acidente violento que nos deixe às portas da morte, por exemplo, tornam-nos
psicologicamente instáveis e frágeis. É natural que uma pessoa nesta condição sinta necessidade de
repensar comportamentos e altere significativamente os seus hábitos. Imagine-se um patrão irascível
que vende a empresa, liberta-se da pressão extrema que o afligia e transforma-se no homem mais
calmo e mais encantador do planeta. De certo modo, João Pedro também vivia sob tensão devido a
uma pressão externa, ainda que esta fosse mais imaginária do que verdadeira. Era o mundo contra ele
e, convenhamos, o mundo inteiro tinha um peso incomensurável.
Naquela manhã insana, ao ver-se perante Cristiane, João Pedro teve a sensação, cristalina e, na sua
mente, absolutamente autêntica, de que o sonho se tornara realidade e, portanto, experimentava um
fenómeno deliciosamente transcendente. João Pedro não estava completamente doido, outros que
tinham passado por experiências semelhantes haviam embarcado em aventuras bem mais
megalómanas, como inaugurar cultos religiosos que moviam milhares de fiéis incondicionais, por
acreditarem que tinham sido tocados pelo Espírito Santo!
João Pedro não se tornou um visionário religioso. De facto, não se tornou santo, de todo, apenas
pensou que o seu sonho se tornara realidade, porque, no seu cérebro, essa impressão foi tão
verdadeira que não podia ser uma ilusão. Mas João Pedro não considerou que pudesse estar a
acontecer precisamente o contrário e não fosse o sonho a tornar-se real mas ele a embarcar
imprudentemente na fantasia que sonhara. Doravante, portanto, ele estaria compenetrado a viver o
sonho e a agir em conformidade com a sua ideia imaginária da realidade.
Sentia-se tão bem disposto que, quando saiu do café, decidiu não regressar a casa de imediato.
Vestia calças de ganga e uma camisa branca sem botões, que se enfiava pela cabeça ao estilo indiano.
As calças apresentavam-se manchadas de mil cores, por serem as suas preferidas para usar enquanto
pintava. Não se podia dizer que estivessem em muito bom estado, eram calças de trabalho e não
serviam para ir a lado nenhum, senão para usar em casa. João Pedro não trocara de roupa antes de
sair porque só pretendia ir tomar a bica e voltar logo para o seu quadro, para as suas tintas. Tratava-