Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

ingénua, percebia que os homens a desejavam pela sua beleza e só alguns, poucos, se aproximavam
com o desígnio de a conhecer genuinamente. Estabelecer uma relação verdadeira, aturar-lhe as
idiossincrasias, o mau humor nos dias tristes, escutar os seus problemas, apoiá-la nas suas angústias,
era outra coisa completamente diferente. Cristiane não tinha uma explicação rigorosa para o seu
crescente desinteresse. Parecia-lhe que trazia sempre uma legião de homens bonitos atracados às
suas saias, todos eles com palavras charmosas e enganadoras, e tornara-se naturalmente desconfiada.
Era difícil determinar se valia a pena conhecer um homem, requeria tempo e ânimo, que ela não
dispunha, para investir na relação. E a vida de Cristiane, tão pouco estável por causa do trabalho que
a obrigava a viajar permanentemente, também não ajudava.


Estes eram os motivos que Cristiane ia encontrando para se autojustificar do frio que ia no seu
coração. Motivos fracos, entenda-se, pois não era verdade que havia um ror de hospedeiras
lindíssimas com uma vida igualmente agitada, casadas, com filhos e felizes?
No fundo, Cristiane não tinha uma boa razão para ser como era. Simplesmente, era. As
justificações que ia juntando mentalmente — como se tivesse necessidade de organizar um dossiê
com o historial do seu problema para, no final, tirar conclusões lógicas e claras — destinavam-se a
procurar explicações para a insatisfação que a perturbava. Cristiane era infeliz e queria saber
porquê, pois, não tendo uma explicação objectiva para essa infelicidade, precisava de chegar ao
âmago do problema para assim poder consertar o que havia de errado nela. E se não fosse possível
reparar a sua alma solitária, se concluísse que estava condenada a sofrer de eterna melancolia, pelo
menos teria o conforto de entender a origem da sua condição depressora.
Cristiane ambicionava ser uma pessoa diferente e se pudesse trocava alguma da sua beleza
deslumbrante pela paz de espírito. Quem a conhecesse superficialmente, diria que era uma mulher
cheia de energia, de grandes alegrias, senhora do seu nariz, munida de uma inteligência fina. Vendo-a
sempre rodeada de bajuladores, ninguém a imaginaria sozinha numa casa vazia, porque ela se
escondia nos seus momentos negros e só se revelava nos picos da euforia. Não conhecemos
realmente as pessoas com que nos cruzamos diariamente, quanto mais as que só vemos
ocasionalmente.


Naquele instante, João Pedro postava-se perante o espelho da casa de banho de Cristiane a
experienciar a sensação transcendente de observar o seu reflexo e não se reconhecer.
Definitivamente, parecia-lhe um rosto muito conhecido, de um amigo próximo, talvez, mas não o seu.
Contemplou-se demoradamente, torceu o nariz, arreganhou os dentes, piscou os olhos, inclinou-se na
direcção do espelho, e o rosto à sua frente imitou-o sem hesitação. Via um náufrago com a barba
selvagem, o cabelo encaracolado do sal e da água, o rosto vermelho da exposição ao sol. Aquele ele
que não era ele envergava uma camisa amarrotada e umas calças de ganga pintalgadas de todas as
cores, como uma paleta ambulante. Este não sou eu, pensou, quase escandalizado. As cervejas que
bebera na praia mais a que Cristiane lhe oferecera depois, não eram, certamente, alheias ao espanto
de João Pedro. Penteou-se inutilmente com as mãos, fez um sorriso ébrio ao espelho, saiu da casa de
banho.

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