Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

no quadro, como um fotógrafo a estreitar o pedaço de mundo que lhe interessava no enquadramento
da máquina. Não fosse Cristiane quebrar esse encantamento com algum comentário ocasional e João
Pedro iria aluado até ao fim do dia.
Um alegre chilrear de pássaros livres chegava pelas janelas estreitas e compridas, que corriam de
parede a parede ao nível do tecto, ao fundo da sala, atrás de Cristiane. Um feixe de luz descia dessas
janelas até ao chão, fazendo um extraordinário efeito de rampa luminosa que não escapou ao olho
agudo de João Pedro. Mas era soturna a sala, dependendo de tão escassa fonte de luz natural para um
espaço assim luxuoso. Cinquenta metros quadrados de um rico soalho envernizado exigiam janelas
largas, panorâmicas! Cristiane já comentara que pensava trazer um arquitecto para deitar abaixo a
parede do fundo e abrir a sala para o jardinzinho das traseiras, com a sua laranjeira fresca, os muros
caiados de um branco vivo, faiscante, o sol que lá batia toda a tarde. Prevendo esta dificuldade,
mesmo com os dias de Verão a recolherem-se a horas tardias, João Pedro trouxera de casa um foco
potente que acendeu quando a luz começou a mudar, alterando sensivelmente o tom das cores. Até
porque Cristiane ficara de costas para as janelas. Tinha um belo efeito, mas complicava-lhe a vida.
Ela ia observando João Pedro a trabalhar com uma paciência devota e parecia-lhe mentira que só o
tivesse conhecido na véspera. Tinham passado tantas horas juntos... Afeiçoara-se a ele, pelo encontro
de interesses, pela sua arte, pelo deslumbramento que lhe imprimia sem nada fazer por isso.


Mas às cinco da tarde Cristiane aborreceu-se, exigiu um intervalo. Ele resignou-se, pousou os
pincéis, levantou-se do banco, esticou as costas. Ela enfiou só o vestido e foi à cozinha buscar duas
cervejas, deixando-o a suspirar. João Pedro tinha a certeza de estar a gozar o privilégio de viver um
sonho e parecia, de facto, um sonho!
Cristiane voltou com uma garrafa de cerveja em cada mão e, no instante em que atravessou à frente
da explosão de luz que irrompia das janelas ao fundo da sala, o seu cabelo ganhou uma cor etérea e
João Pedro viu-a ainda mais bonita, se isso fosse possível. Cristiane surpreendeu-o em êxtase a
registar essa visão, a pensar que queria retratá-la assim, e parou no lugar exacto em que a luz fazia a
sua magia, também ela surpreendida, uns passos à frente dele, a ponderar como aquele homem
extraordinário era invulgar.
É curioso que tanto João Pedro como Cristiane se viam reciprocamente como criaturas
excepcionais de cuja atenção não eram merecedores. Esta percepção errónea, exagerada, do outro
acontecia porque ambos tinham uma fraca auto-estima e, por conseguinte, desvalorizavam as suas
próprias qualidades.
João Pedro considerava-se um pintor falhado que não vendia um quadro e que caíra no
esquecimento ainda antes de ser reconhecido. Bem, João Pedro considerava-se um falhado em toda a
linha, profissional e socialmente, o que, bem vistas as coisas, até revelava uma grande lucidez da sua
parte, porque não só era verdade como ele o admitia sem ilusões ou tentativas patéticas de se
enganar com desculpas para apaziguar a alma. João Pedro era de tal maneira falhado que precisava
de viver num sonho, numa realidade paralela, para se libertar dos seus bloqueios catastróficos e
conseguir tornar-se o oposto do que realmente era, ou seja, aquele que desejava ser. Neste aspecto,
já não revelava lucidez nenhuma.
Mas, ao pensar que não prestava como pintor, João Pedro desvalorizava-se, porque o seu falhanço
não se devia à falta de qualidade artística, mas à tendência suicida para se boicotar a si mesmo, ao
seu próprio talento, à sua carreira. Seria a obra de João Pedro maior do que ele? Provavelmente, mas

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