nestes tempos modernos, de deriva económica e espaço exíguo para uma concorrência desesperada,
não havia contemplação com os génios descompensados.
Na desadaptação social de João Pedro havia vários e insuspeitos pontos de contacto com
Cristiane. Também ela se tinha pouco em conta porque a sua melhor qualidade, ou, se quisermos, a
sua maior vantagem, não lhe conferia mérito algum. Cristiane não fizera nada para ser admirada pelo
sexo oposto, ou invejada pelas outras mulheres. Simplesmente nascera bonita e limitava-se a
aproveitar-se da beleza. Contudo, nem isso fazia bem, pois seria legítimo perguntar se uma mulher
que tinha o mundo a seus pés não deveria ter seguido pela estrada do sucesso até ao topo? Porque
recusara a carreira de manequim que lhe havia sido oferecida recorrentemente por alguns dos mais
influentes caçadores de talentos do mundo da moda? Ou porque não seguira outra carreira qualquer
mais prometedora e lucrativa do que a de hospedeira de bordo? A pergunta não era nova para
Cristiane e a resposta dela era sempre a mesma: estava-se nas tintas para a moda, para a fama e para
o dinheiro. E no entanto não estava. Estivera realmente quando, mais jovem, as oportunidades tinham
surgido e ela preferira ser hospedeira para desiludir o pai. Quisera contrariar a vontade dele como
retaliação pela forma como o embaixador geria a sua carreira. Cristiane vivera a infância e a
juventude em tantos países diferentes quanto os postos diplomáticos em que o pai fora sendo
colocado. A progressão meteórica da carreira do pai implicara mudanças frequentes, com todos os
inconvenientes para a família resultantes dessa mobilidade geográfica. Cristiane habituara-se a
deixar os amigos para trás, a esquecer os namorados na breve correspondência sem esperança e
prontamente interrompida. Cristiane optara por não fazer mais amigos porque não os queria perder e
indisponibilizara-se para se apaixonar, de modo a prevenir-se do sofrimento da separação definitiva.
Cristiane sentia que não pertencia a lugar nenhum, e, na sua rebeldia juvenil, entendeu que uma alma
sem lar devia voar incessantemente pelo mundo e não se prender jamais a lugares ou pessoas.
Desceu sobre ela esta concepção romântica de uma vida alada nessa época crucial em que o
embaixador regressou à pátria com a perspectiva, nunca concretizada, de ser ministro. Foi então que
deixou de viver com os pais e tomou o seu rumo próprio. Mas nunca deixaria de ser um espírito
solitário.
João Pedro olhava para Cristiane e via uma mulher de uma beleza invulgar que, pela ordem natural
das coisas, não estaria ao seu alcance. Porque haveria ela de se interessar por um falhado, feio e
incapaz de encontrar o seu lugar na sociedade? Já Cristiane, olhava para João Pedro e via um homem
das artes, intelectualmente superior, um excêntrico dedicado às coisas belas do mundo, mas que não
se deixava impressionar excessivamente nem se subjugava à influência caprichosa de uma mulher
bonita. Sem o saber, João Pedro neutralizara o superpoder de Cristiane e ela rendia-se ao que se
poderia designar por alter ego dele. Em suma: o que os unia era a interpretação errada que cada um
fazia do carácter do outro.