Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Hum-hum.
Não foi uma tarefa fácil, porque nenhum dos dois era muito dotado para aqueles trabalhos, mas
desmontaram a cama, levaram-na aos bocados para baixo, voltaram a montá-la na sala. Depois
escolheram os lençóis, a colcha, os almofadões. João Pedro optou pelos brancos e os beges muito
claros.


Três semanas extinguiram-se e, nesse entretanto, João Pedro e Cristiane passaram dias a fio na sala
dela, concentrados exclusivamente um no outro. Ele, obcecado por ela, assegurando que era a sua
musa, pintava impetuosamente retratos; ela, deslumbrada com ele, dizendo que era o seu mestre,
pousava diligentemente na cama. Foram esquecendo a vida lá fora, pouco saíam, senão para beber
um café, dar um passeio ao fim da tarde a pé pelas redondezas, fazer uma incursão ao supermercado
para se abastecerem. De resto, Clara fora para o Algarve de férias com as crianças, o que o deixava
completamente livre para se dedicar ao seu projecto, e como! João Pedro embrenhava-se no trabalho
com uma devoção apaixonada, uma comoção tumultuosa que transmitia para a tela como nunca lhe
acontecera. Estava a descobrir uma forma de pintar inteiramente nova, pois ao pintar os olhos de
Cristiane tinha a intenção de fazer jus à ideia de que estes eram o espelho da alma; se retratava o
rosto dela precisava de transmitir o seu estado de espírito. Perguntava-lhe mesmo o que estava a
pensar, se se sentia aborrecida, se feliz. Pintava emoções!


Depois, havia uma carga erótica tremenda, uma lascívia derramada para a tela, porque nesses dias
viviam fascinados um com o outro e, entre uma sessão e a seguinte, ele largava os pincéis e caía
alegremente na cama e desmanchava com ela os lençóis onde Cristiane estivera enredada com as
deliciosas curvas de uma perna exposta, uma coxa insinuando-se, um seio à vista. Era um festim de
sexo! A qualquer momento, experimentavam todas as fantasias que a imaginação e o desejo
impunham, e essa feliz libertinagem era transmitida para os quadros, cada vez mais ousados nas
poses que escolhiam para Cristiane. Estavam tão desligados do mundo que não ponderavam com
senso a ousadia das posições que ela adoptava para João Pedro a retratar. E assim, a uma quase
cândida pose do primeiro quadro na chaise longue, sucedia-se a atitude pornográfica das pernas
abertas, a mão procurando a auto-satisfação, o rosto retorcido no esgar de um orgasmo. Mas, na sua
obsessão pelo realismo, João Pedro não se contentava com a simulação, pedia a Cristiane que fosse
convincente e se estimulasse verdadeiramente, de modo, dizia, a permitir-lhe captar aquela
expressão que lhe via quando faziam amor.


Cristiane tirara umas curtas férias por causa do funeral do pai e para fazer a mudança de casa, mas
fora apanhada por aquela reviravolta inesperada que lhe alterara os planos. Conhecer João Pedro
provocara-lhe uma avalancha de emoções a que não se poderia chamar amor, pois ela bloqueara há
muito a parte do cérebro que permitia esse tipo de sentimento tão especial e agora, mesmo querendo
voltar atrás e permitir-se amar um homem que a atraísse, não conseguia ser dona da sua vontade. Já o
tentara antes e não resultara. Ao fim de algumas semanas com um companheiro, Cristiane começava a
sentir-se ansiosa e psicologicamente fragilizada. Emergia nela um receio injustificado de ser
obrigada a desistir dele em breve por alguma circunstância que não poderia controlar e o
desassossego levava-a a tomar atitudes irracionais. Nessas ocasiões, punha-se na defensiva, era
agressiva, provocava discussões constantes, a ponto de tornar a relação insustentável. Levantava

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