Uma noite em Nova York

(Carla ScalaEjcveS) #1

que tinham surgido novos compromissos e só regressaria no fim da semana, a
tempo do Natal.


Patrícia sentia-o cada vez mais distante e, por mais que lhe custasse, tinha
de admitir que ela também desistira dele há muito. Eram só um casal, a
companhia dela, a companhia dele, duas pessoas com uma longa história
comum. “Mas o que valia isso afinal?”, perguntou-se, o que valiam décadas
construindo uma vida a dois se, no fim, tudo se esfumaçava no desencontro,
na ausência de entusiasmo, na falta de comunicação? O trabalho e os filhos
eram as suas únicas preocupações, e estes últimos, de fato, o derradeiro
interesse mútuo.


Tinham-se conhecido de um modo tão insólito, tão dramático, que, depois de
o pior ter passado, não lhes restara o menor escrúpulo em entregar-se um ao
outro com a certeza de que a paixão seria um momento eterno. Filipe vinha
saindo de uma livraria, trazia um livro na mão, folheava-o distraído. Patrícia
ia atrasada para chegar ao hospital, correndo para o ônibus que chegava ao
ponto. Ele se meteu pelo meio, chocaram-se, ela deixou escapar das mãos um
monte de folhas, fotocópias para estudar, que se espalharam pelo chão com
um espalhafato que a fez corar de vergonha. Ele correu para apanhá-las, foi
atrás do vento que as levava calçada afora. Devolveu-lhe um monte de papéis
amarfanhados entre duas mãos desajeitadas, com um sorriso comprometido,
parecendo-lhe quase divertido com o incidente. E Patrícia, contrariada, vendo
o ônibus partir sem ela, aflita com o atraso, teve vontade de bater nele, de
chamá-lo de desastrado, irresponsável, enfim, de descarregar sobre ele a sua
frustração. Em contrapartida, Filipe, encantado com ela, com os seus olhos
castanhos, o cabelo castanho apanhado num rabo-de-cavalo prático, o nariz
pequeno, perfeito, os lábios carnudos, atreveu-se a convidá-la para tomar um
café com o pretexto de ajudá-la a voltar a pôr em ordem as páginas do monte
de papéis que ela lutava para juntar. Patrícia, desconcertada, só teve ânimo de
enxotá-lo, replicando-lhe que não precisava de ajuda nenhuma, que estava
atrasadíssima e perdera o ônibus por culpa dele. Tenho o carro logo ali, saiu-
lhe, e apontou para o outro lado da rua sem pensar na inconveniência da
sugestão. Não, obrigada, respondeu ela, ríspida, quase explodindo. Filipe
resignou-se, disse desculpe mais uma vez e começou a afastar-se, a atravessar
a rua, mas não resistiu em voltar a cabeça espreitando por cima do ombro para
vê-la mais uma vez, ainda atrapalhada com os papéis. Observou-a, querendo
fixar a imagem dela, de estatura pequena, bem proporcionada, de jeans, tênis,
suéter de malha, um avental branco pendurado no braço. Ele avançou um,
dois passos rua adentro, concentrado nela, deslumbrado com ela, esquecendo-

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