Uma noite em Nova York

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Filipe sentiu que a tinha perdido. Patrícia entusiasmara-se com ele, era certo,
talvez tivesse sido levada por um sentimento de culpa, de compaixão, ao vê-lo
desvalido na sua cama de hospital por ter se distraído com ela ao atravessar a
rua, talvez tivesse sido mais do que isso, não sabia, mas era óbvio que Patrícia
se desiludira. Provavelmente, pensara que ele não fora sincero, que lhe
omitira a existência de outra mulher na sua vida, e não estaria disposta a
perdoá-lo por essa falha de caráter.


Desanimado, Filipe voltou lentamente à sua rotina de sempre, empenhado
em escrever pelas tardes afora, sentado à mesa de um café perto de casa, de
caneta na mão, mergulhado no trabalho solitário, esquecido da xícara de café
que esfriava antes de beber, pedindo outro expresso entre uma página
terminada e a seguinte que começava. Nessa época, ainda não escrevia com a
desenvoltura que haveria de adquirir anos mais tarde, e cada página escrita era
uma vitória, era uma alegria resgatada às dificuldades. Enchia a mesa de cafés
esquecidos, acendia cigarros seguidos, às vezes sem se dar conta de ainda ter
um queimando no cinzeiro repleto de bitucas, empilhava folhas escritas à sua
direita, na mesa, para no dia seguinte as corrigir furiosamente, riscando
metade das frases, quando não as riscava por inteiro, escrevendo e
rescrevendo, amarrotando o papel numa bola, reprovando o seu próprio
trabalho, desesperado porque tudo lhe parecia medíocre, demasiado
imperfeito, pouco consistente e muito aquém dos seus pensamentos. O que
hoje era extraordinário amanhã seria insuportavelmente básico, mal escrito e
desinteressante. Tinha um senso crítico exagerado, embora o pouco que não
rejeitava fosse quase tão bom quanto aquilo que concebia antes de passar para
o papel. Não aproveitava a maior parte do trabalho, mas as linhas depuradas
que se salvavam da autocensura constituíam o germinar de uma carreira
brilhante. Mais tarde, iria se dar conta de que a felicidade e o bem-estar
acomodavam a alma e não desencadeavam o mesmo poder criativo que o
desconforto de um espírito dilacerado. O sofrimento, o desapontamento, a
revolta, a necessidade de afirmação, de sucesso, para ocultar uma humilhação,
as emoções em carne viva, era isso que impulsionava o talento criador.


Ultimamente distraía-se muito, perdia-se em sentimentos de amor, via-se
cismando com Patrícia e lembrando-se de tudo o que lhe devia ter dito e não
lhe saíra no momento oportuno. Andava sonhador e não conseguia se

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