8 • Público • Quinta-feira, 19 de Setembro de 2019
ESPAÇO PÚBLICO
longínqua entrevista a Maria João Avillez,
autodeÆniu-se como bernsteiniano. Estamos
a falar das duas mais importantes Æguras da
história daquele partido.
É um facto que, em bom rigor, e no plano
estritamente teórico, há alguma diÆculdade
em admitir que um partido social-democrata
possa assegurar a representação política de
um eleitorado de
direita. Um estudo
elementar de
sociologia política
nesse âmbito
revelaria facilmente a
existência de uma
insanável
contradição. Só que a
realidade histórica é
sempre um pouco
irredutível a tais
apreciações de
natureza quase
disciplinar. O PSD
não é um partido
social-democrata
puro, integra outras
linhas de orientação
política no seu seio,
mas mantém uma
inequívoca ligação ao
ideário
social-democrata tal
como este se foi
manifestando na
Europa do
pós-guerra.
O vasto consenso
social-democrata existente
em Portugal tem ou não tem
virtudes? A meu ver tem
Francisco Assis
O consenso social-democrata
H
ouve um período no pós-guerra
em que a social-democracia se
tornou de tal forma consensual
que chegou ao ponto de alguém
proclamar o surgimento de uma
“civilização social-democrata”.
Foi por essa altura que o
conservador Richard Nixon
proferiu a mais inesperada de
todas as suas declarações: “Agora
somos todos keynesianos.” E provavelmente
eram. Logo a seguir sobrevieram as crises
petrolíferas internacionais, instalou-se o
fenómeno económico conhecido como
estagÇação e irromperam as primeiras
críticas radicais ao Estado-providência. Era o
Æm do tal consenso social-democrata.
Quarenta anos depois esse desaparecido
consenso aparenta ressurgir em Portugal. O
PS não precisa de reclamar a sua adesão à
social-democracia dada a evidência histórica
da sua identiÆcação com a mesma; Rui Rio
proclama a sua natureza social-democrata
lembrando a própria designação do seu
partido; o Bloco de Esquerda, através das
palavras da sua líder, ensaia uma inédita, mas
a meu ver legítima, aproximação à
social-democracia. Alguns analistas têm
revelado grande exasperação face a tão
alargada convergência. Esta constituiria, no
entendimento daqueles, um preocupante
sintoma de despolitização da sociedade ou,
pelo menos, de signiÆcativa rarefacção da
oferta ideológica e política. Estaríamos,
assim, condenados a conviver com um
debate público empobrecido, dada a
ausência de algumas correntes do
pensamento político habitualmente
presentes nas demais democracias
europeias. Esta preocupação é
compreensível e, até certo ponto, acertada.
Não a compartilho, porém, até ao Æm pelas
razões que procurarei de seguida enunciar.
É sabido que o sistema partidário
português se singulariza no contexto
europeu pela circunstância de integrar como
principal formação do centro-direita um
partido de inspiração social-democrata. Há
quem veja nisso uma grave anomalia. A sê-lo
tratar-se-á de uma patologia velha que
remonta à origem do regime democrático. Sá
Carneiro mudou o nome do partido a Æm de
explicitar nominalmente a identidade
doutrinária que reclamava; Cavaco Silva
sempre se declarou keynesiano e, numa já
É natural que algumas personalidades que
se reconhecem no pensamento liberal
conservador lidem mal com esta situação.
Perturba-os esta dimensão social-democrata
de um partido que gostariam de ver
tributário do já referido liberalismo
conservador. Existe hoje um grupo
assinalável de intelectuais e de articulistas de
direita a quem repugna esta suposta
deformação esquerdizante do PSD e para
quem Rui Rio representa a encarnação de
tudo quanto detestam nessa deformação.
Foram essas pessoas, a quem não falta poder
de intervenção mediática, quem mais se
empenhou na oposição ao líder do PSD.
Ainda agora na avaliação das prestações
televisivas de campanha isso foi mais do que
evidente. A intelectualidade da direita
conservadora e liberal portuguesa, ou pelo
menos a lisboeta, abomina tanto Rui Rio
quanto Catarina Martins. A Jerónimo de
Sousa acham-lhe uma certa graça. Ao menos
gosta de touradas como eles.
Não será abusivo aÆrmar que esta cisão no
interior do espaço social e político da direita
portuguesa terá óbvias repercussões nos
resultados eleitorais de 6 de Outubro e
originará um dos mais interessantes debates
que se podem antecipar no futuro próximo.
Os liberais conservadores têm gente de
elevada capacidade intelectual ainda que
pareçam demasiado aprisionados por algum
pensamento anglo-saxónico. Na sua maioria
patenteiam algum desconhecimento dos
Ælósofos alemães e exibem uma atitude de
sobranceria face ao pensamento francês.
Fico satisfeito
com o facto de,
quer Catarina
Martins, quer
Rui Rio, se
auto-incluírem
no tal e já
tão citado
consenso
social-
-democrata
Eurodeputado (PS). Escreve à quinta-feira
Veremos na altura própria do que serão
capazes no domínio estritamente político.
Percebida esta dissensão é altura de
retomarmos a abordagem da questão atrás
enunciada: o vasto consenso
social-democrata existente em Portugal tem
ou não tem virtudes? A meu ver tem. Por um
lado, garante um amplo entendimento em
torno da necessidade de uma relevante
intervenção social num país ainda marcado
por doses obscenas de pobreza. Esse
entendimento constitui o melhor antídoto
contra os riscos de excessiva radicalização
política que nas presentes circunstâncias
históricas poderia levar ao surgimento de
movimentos de extrema-direita. Por outro
lado, contrariamente ao que se diz, este
entendimento não anula a conÇitualidade
política, dadas as profundas divergências que
se continuam a manifestar entre os múltiplos
sectores que de algum modo podem ser
associados à social-democracia.
Como não sou dos que acham que a
democracia portuguesa possa vir a beneÆciar
com uma hipotética polarização do
confronto ideológico e político, Æco satisfeito
com o facto de, quer Catarina Martins, quer
Rui Rio, se auto-incluírem no tal e já tão
citado consenso social-democrata.
Fazem-no, naturalmente, cada um à sua
maneira e, de resto, de modo diferente
daquele que caracteriza a adesão à
social-democracia por parte do partido em
que me incluo, o PS.
NELSON GARRIDO