Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1
10 • Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019

ESPAÇO PÚBLICO


para a cultura e advocacia como Francisco
Balsemão (o amigo que sempre invocava),
Morais Leitão, Vieira da Almeida (fundadores
de duas das maiores sociedades portuguesas)
e depois, na ampliação da sua sociedade,
Manuel Castelo Branco. Nunca escondeu que
o seu modelo dos anos 70, ainda que
incompatível com a evolução entretanto
ocorrida, era o que mais lhe agradava, por o
dotar da máxima independência que tanto
prezava.


  1. Se há qualidades que os que tiveram
    privilégio de o conhecer e conviver
    invariavelmente lhe atribuem são a
    inteligência e a independência. De um lado, a
    inteligência vertida em lucidez e
    discernimento; do outro, a independência
    declinada em liberdade e frontalidade. Para
    André Gonçalves Pereira — ou talvez melhor,
    em André Gonçalves Pereira —, a inteligência
    postulava a independência e a independência
    exponenciava a
    inteligência. Era
    justamente esta
    relação de implicação
    intensiva que o
    tornava
    absolutamente
    singular. Para o
    comum dos mortais,
    a independência é
    um valor, um ethos,
    uma virtude; já a
    inteligência não passa
    de uma
    característica, de
    uma qualidade, de
    um atributo. A
    independência
    resulta de uma
    escolha moral, do
    cultivo constante e
    vigilante do sujeito,


André Gonçalves Pereira


ou a inteligência como virtude


1.


André Gonçalves Pereira era
carismático, um homem de carisma
e de carismas. Distinguiu-se cedo por
uma fulgurante carreira académica,
assente nas três marcas de água da
sua personalidade: a excepcional
capacidade intelectual, a formação
cultural inabarcável e o sentido do
realismo e do pragmatismo. À
excelência da investigação
somava-se uma enorme aptidão pedagógica,
uma impecável vocação discursiva. Com
efeito, era um excelente professor e um
orador eloquente, mas — como em tantos
outros domínios — totalmente fora dos
habituais cânones lusos. Primava pelas
fórmulas concisas, precisas e directas. Ele não
se demorava, era invulgarmente breve e
sucinto. No seu discurso, nunca havia uma
palavra a mais e nunca havia uma ideia a
menos. Em frases enxutas e sonoras,
temperadas e apimentadas por um Æno
sentido de humor, estava tudo dito e nada
Æcava por dizer. Qualquer explicação ou
tomada de posição, nos mais diversos
ambientes, era sempre colorida por uma
petite histoire, cheia de sabor e de graça,
normalmente tirada da sua inesgotável
experiência. A historieta fazia pedagogia,
lançava pontes e amarras para os
interlocutores e amaciava a exigência e o rigor
das fórmulas contidas e concisas. À elegância
e economia do verbo correspondia uma
omnipresente vontade de ir directo e sem
rodeios à essência dos assuntos, sem
contemporizações nem concessões. A sua
frontalidade era lendária e nela, ao invés do
que temiam muitos habitués de corredores e
de salões, não intercedia hostilidade nem
insensibilidade. No dia seguinte a uma
reunião dura e seca, vinha sempre um
cumprimento interessado e um gesto
elegante. Havia apenas o imperativo da
honestidade, da decência e da lealdade. O seu
saber enciclopédico em nada o impedia de
reconhecer a qualidade dos outros e de os
cumprimentar quando, em ocasiões muito
contadas, o venciam ou convenciam em
algum argumento. Apesar da impaciência
para com os atrasos e os Çoreados lusitanos,
ou talvez por causa dela, o seu discurso e a
sua atitude inscreviam-se na ordem da Çeuma
britânica. Até na irritação ou na
impertinência, exalava charme e classe.
André Gonçalves Pereira foi um dos
mentores e construtores da advocacia
moderna e cosmopolita em Portugal. Até ao
25 de Abril, lembrava-o tantas vezes, teve
apenas clientes estrangeiros, para poder
manter uma prudente distância do regime.
Com ele trabalharam nomes tão importantes

do mérito e do esforço pessoal. E, por isso
mesmo, a independência consubstancia uma
virtude. A inteligência, por sua vez, decorre
dos caprichos biológicos e, porventura, muito
à Ortega y Gasset, da circunstância formativa
e educativa de cada qual. Mas, também por
isto e tal como a beleza, ela é vista como uma
qualidade inata, susceptível de estimulação e
aprimoramento, mas sem um lastro e sem um
desígnio ético.
“Em” André Gonçalves Pereira, as coisas
não se passavam assim, não se gizavam assim,
não eram assim aÆnal. Nele e para ele, a
inteligência não era um dado, um adquirido,
um dom. Era naturalmente isso, mas era,
tinha de ser e acabava por ser muito mais do
que isso. Porque profundamente imbricada

À elegância e
economia do
verbo
correspondia
uma vontade
de ir directo
aos assuntos

Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira
[email protected]

com uma assunção interior de
independência, insubmissão e liberdade, a
inteligência alçava-se à condição de virtude. A
inteligência não consubstanciava um dom
neutro, indiferentemente mobilizável para o
bem e o mal, para o verdadeiro e o falso, para
o justo e o injusto, para o belo e para o feio. A
inteligência era um bem. E, sendo um bem,
não era um mal. Não devia nem podia ser um
mal. Um bem que tendia para o bem, o justo,
o verdadeiro, o belo. Esta concepção,
percepção e vivência (ou até “vida”) da
inteligência projectava-se medularmente no
mundo dos afectos, nas curvas distendidas ou
apertadas da amizade e do amor. Muito
signiÆcativamente, foi a André Gonçalves
Pereira que ouvi uma das mais
desconcertantes e perfurantes deÆnições —
melhor fora dizer “intuições” ou
“intelecções” — do amor: “O amor é um acto
de inteligência.” Eis uma “deÆnição” que
talvez diga mais sobre a inteligência do que
sobre o amor. Para ele, a inteligência — vertida
nas tais frases cortantes e lapidares — era
também o veículo da afeição, da amizade, da
sedução, do amor. Esses afectos da
inteligência ou inteligência dos afectos são
também da ordem da virtude. A Laura, sua
mulher, aÇorava em todas as conversas. Não
por acaso ou acidente, repetiu tantas vezes
que o casamento fora o seu acto mais
inteligente. Essa virtude da inteligência, assim
entendida ou intuída, era também uma
declaração de amor à Laura. Para a Laura, um
beijo triste.

DANIEL ROCHA

Paulo Rangel
Palavra e Poder

Ataque a instalações
petrolíferas Os ataques às
refinarias sauditas são
extremamente preocupantes e
denotam uma perigosa
escalada nos vários conflitos
que assolam o Oriente Médio.

Ministro da Educação
A abertura das aulas está a ser
marcada, em vários pontos do
país, por fechos e adiamentos
por falta de condições mínimas.
No ensino como na saúde, as
falhas sucedem-se.
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