Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019 • 11

ESPAÇO PÚBLICO


a visão fragmentária e estetizante colonial foi
substituída por um circuito expositivo que
procura respeitar a lógica das culturas locais
na África Central. Tem agora um programa de
artistas e jornalistas residentes. Possui uma
vasta coleção de zoologia, geologia,
mineralogia e antropologia cultural com
milhões de objetos, incluindo arquivos de
exploradores, empresários e historiadores.
Nos Países Baixos, os museus etnográÆcos
sofreram uma atualização notável, tendo
estabelecido ligações com as comunidades de
origem das suas coleções e com os cidadãos
holandeses originários dessas comunidades.
O Museum Volkenkunde de Leiden está
baseado na relação simbiótica entre objetos e
projeções de Ælmes;
vi ali uma pequena
exposição
temporária com
vídeo sobre a
peregrinação a Meca
que nunca
esquecerei. Os
museus etnográÆcos
holandeses criaram
uma rede de
investigação sobre
cultura material
dirigida por Wayne
Modest, já
entrevistado neste
jornal, o antropólogo
e museólogo mais
estimulante que
conheci nos últimos
anos.
Se mudarmos de
continente, o Museu
Nacional de
Antropologia do
México oferece uma Professor no King’s College de Londres

Francisco Bethencourt


Museus


P


ara que serve um museu? Esta
pergunta tem estado largamente
ausente de debates recentes sobre
projetos de museus em Portugal.
Encontramos a resposta na
revolução museológica e
museográÆca que ocorreu nas
últimas décadas.
No Reino Unido, o Victoria and
Albert Museum, dedicado às artes
decorativas, redeÆniu os espaços existentes,
criou uma nova ala, valorizou uma coleção
fabulosa, com peças fundamentais para
compreender a evolução da cerâmica, vidro,
escultura, têxteis, mobiliário e objetos
tradicionais da vida quotidiana em diversas
civilizações, como os netsuke ou os inro no
Japão. Tem organizado exposições
temporárias sobre ópera, música (David
Bowie, Pink Floyd), moda (Alexander
McQueen, Christian Dior, Balenciaga),
materiais (seda chinesa, esmalte japonês,
têxteis indianos, novas Æbras), desenho,
fotograÆa e ilustração de diferentes períodos e
regiões do mundo. A cultura material, que
tem inspirado novos caminhos
historiográÆcos, encontra ali o grande suporte
expositivo. Novos museus sobre a escravatura,
bem concebidos e geridos, surgiram em
Liverpool, Bristol, Hull e Londres, perante o
interesse e aprovação geral — lembremos o
ressentimento da direita portuguesa pelo
justo projeto de memorial da escravatura em
Lisboa.
Em Paris, o Museu do Quai Branly,
dedicado às artes primeiras de África,
América, Ásia e Oceânia, permitiu uma nova
reÇexão sobre as culturas do mundo, tendo
absorvido coleções do Musée de l’Homme e
do museu das artes de África, Ásia e Oceânia,
instalado no palácio art-deco da exposição
colonial de 1931 na Porte Dorée. Este espaço
está agora transformado em museu da
imigração. Na Bélgica, o museu colonial de
Tervuren foi fortemente criticado na viragem
para o século XXI pela museograÆa antiquada,
tendo respondido com uma dinâmica
reÇexiva que conduziu a um projeto de
reconstrução e conceptualização. Reabriu em
2018 depois de cinco anos de renovação, onde

lição de qualidade museográÆca, com
coleções soberbas e uma conceção expositiva
que esteve à frente de qualquer museu
equivalente durante décadas. O Museu de
Arte Popular de Puebla ou o Museu das
Culturas de Oaxaca, instalados em antigos
conventos dominicanos bem restaurados,
mostram ricas coleções regionais e conceções
expositivas atualizadas. No Peru, o precioso
Museu de Arte de Lima possui uma
surpreendente coleção de têxteis nos
depósitos a que tive acesso. O Museu de
Arqueologia, Antropologia e História oferece
uma excelente introdução às culturas
diversiÆcadas do país, enquanto pequenos
museus mostram a qualidade de coleções
privadas, como o Museu Larco, com um
fundo de 45.000 objetos, o Museu Amano,
especializado em têxteis pré-colombianos, ou
o Museu de Arte da Universidade de San
Marcos, com uma pequena mas valiosa
coleção. Estes museus contribuem para uma
reÇexão sobre as diferentes identidades
regionais e locais dos respetivos países, mas
existe sempre uma interação com a presença
colonial e com a arte internacional. O traço
cosmopolita está bem vincado no Brasil,
sobretudo no MASP de São Paulo, museu
privado com uma vasta coleção da arte
ameríndia à arte brasileira e europeia
contemporânea. No Extremo Oriente, o
museu nacional de Kyoto e o museu de artes
decorativas da mesma cidade têm coleções
reveladoras da densidade histórica da cultura
japonesa, exemplarmente expostas, onde
surgem claras as ligações internacionais.
Os museus são geralmente baseados em
coleções próprias, tendo como missão
preservar o património, transmitir
conhecimentos sobre essas coleções de forma
didática, participar na produção desses
conhecimentos em ligação com
investigadores. Daí o encorajamento de
projetos partilhados entre museus e
universidades no Reino Unido, que não tem
equivalente no nosso país. Os museus
movem-se numa área complexa de reÇexão, a
partir da cultura material, sobre identidades
culturais locais, regionais e nacionais, sempre
em movimento e em relação com as culturas
do mundo. Os museus são as instituições mais
cosmopolitas que existem, daí a constante
troca de objetos para exposições temporárias.
São potencialmente incompatíveis com
fanatismo e isolamento cultural, pois a cultura
material mostra constantes trocas,
transmissões, transferências de formas sem
fronteiras. Com poucas exceções, a cultura
local está sempre relacionada, de uma
maneira ou de outra, com as culturas do
mundo, daí o fascínio que sentimos ao visitar
museus de outros países.
É por tudo isto que sinto estranheza neste
debate sobre o famigerado museu dos
descobrimentos, geralmente vazio de

Como disse
Eduardo
Lourenço,
Portugal sofre
de hiper-
identidade,
não precisa de
construções
ideológicas
arcaicasarcaicas

conteúdo, como se fosse uma necessidade de
gloriÆcação do passado nacional. Parece o
regresso aos anos 50. Como disse Eduardo
Lourenço, Portugal sofre de hiperidentidade,
não precisa de construções ideológicas
arcaicas. Não tenho problemas com a palavra
descobrimento, que reÇete a expansão
europeia para outros continentes. Mas não
está adequada aos novos tempos, de
superação da visão do mundo centrada na
Europa e abertura, sem complexos nem
atavismos, à qualidade das culturas não
europeias. O problema coloca-se de forma
mais aguda nos museus etnográÆcos ou
coloniais, que procuravam no século XIX
justiÆcar expansão e “missão civilizadora”,
com uma visão paternalista de culturas
indígenas. O salto que se tem dado em países
europeus (com reÇexos em Portugal, temos
bons diretores e conservadores de museus) na
museograÆa dessas coleções e na criação de
museus sobre a escravatura representa um
esforço de inclusão de cidadãos originários
das ex-colónias, de reÇexão transparente
sobre o passado sem esconder práticas de
exploração, de abertura a culturas do mundo
numa perspetiva de educação cívica e de
estabelecimento de pontes com outros povos.
É o sentido de património comum da
humanidade que está implícito em todos os
museus.
O projeto de um novo museu enfrenta
vários problemas. Em primeiro lugar de
dinheiro, pois os museus existentes estão
cronicamente suborçamentados, quando
desempenham um papel cultural
fundamental. Em segundo lugar de conceção,
pois descobrimentos não permitem uma
museograÆa atualizada. Tenho vindo a propor
um museu das diásporas (ou das migrações),
que permitiria reÇetir sobre o passado da
expansão portuguesa, dentro e fora do
mundo colonial, incluindo as migrações
forçadas de escravos africanos e a migração
para Portugal no passado mais recente. Seria
uma forma de reÇetir sobre processos
históricos com signiÆcados e interpretações
diversos, enquanto se incluíam cidadãos
oriundos das ex-colónias e dos novos países
africanos independentes. Em terceiro lugar,
de ausência de coleções próprias, só
colmatável com a agregação de uma ou várias
coleções como se fez no Quai Branly, o que
não é fácil. A alternativa seria a criação de uma
galeria pública dedicada às migrações com
exposições temporárias e um fundo visual
próprio, com outras valências que
permitiriam desenvolver funções didáticas
ligadas ao sistema de ensino e em rede com
museus existentes. No caso de serem
envolvidas instalações do Estado, um projeto
deste tipo exigiria naturalmente um concurso
público de ideias.

Sinto estranheza neste
debate sobre o famigerado
museu dos descobrimentos,
geralmente vazio de
conteúdo, como se fosse uma
necessidade de glorificação
do passado nacional
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