Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1

28 • Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019


MUNDO


O meu nome é Edward Joseph
Snowden. Costumava trabalhar
para o governo, mas agora trabalho
para o público. Demorei quase três
décadas a perceber que há uma
diferença, e quando isso aconteceu
tive alguns problemas no escritório.
Em consequência, agora dedico o
meu tempo a proteger o público do
género de pessoa que então era: um
espião da Central Intelligence
Agency (CIA) e da National Security
Agency (NSA), mais um jovem técni-
co desejoso de construir aquilo que,
tinha a certeza, ia ser um mundo
melhor.
A minha carreira na Comunidade
da Informação (CI) americana
durou sete curtos anos, ou seja — e
foi uma surpresa quando me
apercebi disto —, só mais um ano do
que o tempo do meu subsequente
exílio num país que não escolhi.
Durante esses sete anos, no entanto,
tive a oportunidade de participar na
mais significativa mudança na
história da espionagem americana
— a passagem da vigilância de alvos
individualizados para a vigilância
massiva de toda a população. Ajudei
a tornar tecnologicamente
exequível para um governo coligir
as comunicações digitais do mundo
inteiro, armazená-las por períodos
indefinidos e consultá-las à vontade.
Depois do 11 de Setembro, a CI
ficou esmagada pela culpa de não
ter conseguido defender a América,
por ter deixado que o ataque mais
devastador e destrutivo contra o
nosso país desde Pearl Harbor
acontecesse “no seu turno”, para
usar uma expressão popular. Em
resposta, os seus líderes
procuraram construir um sistema
que evitasse serem apanhados mais
uma vez com um pé no ar. Esse
sistema teria como base a
tecnologia, uma matéria alienígena
para o seu exército de cientistas
políticos e doutores em gestão
administrativa. As portas das mais
sigilosas agências de informação


No livro Vigilância Massiva, Registo Permanente, que publica hoje


(ed. portuguesa da Planeta), o antigo espião explica porque


divulgou um programa global de vigilância. Eis um excerto


abriram-se de par em par para
jovens técnicos como eu. E os nerds
herdaram a Terra.
Se naquela altura havia qualquer
coisa de que eu percebia, era de
computadores, de modo que subi
depressa. Com vinte e dois anos,
recebi da NSA a minha primeira
autorização de nível Muito Secreto
para um lugar na base do
organograma da instituição. Menos
de um ano mais tarde, estava na
CIA, como engenheiro de sistemas
com acesso ilimitado a algumas das
mais sensíveis redes do planeta. O
único supervisor adulto era um tipo
que passava o turno a ler romances
de espionagem de Robert Ludlum e

que por sua vez deu lugar ao
trabalho de garantir que essa
informação estava acessível e podia
ser consultada em qualquer parte
do mundo. Foi nestes projectos que
me concentrei quando, com vinte e
nove anos, fui para o Havai depois
de ter aceite um novo contrato com
a NSA. Até essa altura, tinha
funcionado com base na doutrina
da Necessidade de Saber, incapaz
de compreender o propósito
cumulativo por trás das minhas
tarefas especializadas e
compartimentadas. Foi só no
paraíso que estive enÆm numa
posição que me permitia ver como
todo o meu trabalho funcionava em
conjunto, como as rodas dentadas

de uma gigantesca engrenagem,
para criar um massivo sistema de
vigilância global.
Nas profundezas de um túnel sob
uma plantação de ananases — uma
antiga fábrica subterrânea de aviões
da era Pearl Harbor —, sentava-me
diante de um terminal que me dava
um acesso quase ilimitado às
comunicações de praticamente
qualquer homem, mulher ou
criança que à face da Terra usasse
um telefone ou um computador.
Entre essas pessoas havia cerca de
320 milhões de cidadãos
americanos, meus compatriotas,
que na condução normal das suas
vidas quotidianas eram vigiados
numa grosseira contravenção não

Memórias do homem que denunciou


o “capitalismo de vigilância”


Pré-publicação


Edward Snowden


Tom Clancy.
As agências estavam a violar todas
as regras que elas tinham
estabelecido no empenho de
contratar talento técnico. Em
circunstâncias normais nunca
contratavam ninguém que não
tivesse pelo menos um bacharelato,
ou, mais tarde, no mínimo
frequência universitária, e eu não
tinha nenhuma destas coisas. À luz
de todas as normas, não devia ser
autorizado a entrar no edifício.
(...)
Com vinte e seis anos era, no
papel, empregado da Dell, mas mais
uma vez trabalhava para a NSA. A
procura de fornecedores de
serviços tinha-se tornado a minha
cobertura, como a da maior parte
dos espiões com tendências
tecnológicas do meu grupo.
Mandaram-me para o Japão, onde
ajudei a conceber o que na prática
acabou por ser o backup global da
agência — uma massiva rede
clandestina graças à qual mesmo
que a sede da NSA fosse reduzida a
cinzas por um ataque nuclear havia
a certeza de que nenhuma
informação se perderia. Na altura,
não me apercebi de que criar um
sistema capaz de manter um registo
permanente da vida de toda a gente
era um trágico erro.
Voltei aos EUA dois anos mais
tarde e recebi uma promoção
estratosférica para a equipa técnica
que assegurava o relacionamento
da Dell com a CIA. A minha função
era reunir-me com os chefes das
secções técnicas da CIA para criar e
vender a solução para qualquer
problema que eles fossem capazes
de imaginar. A minha equipa ajudou
a agência a construir um novo tipo
de arquitectura de computação: a
“nuvem”, a primeira tecnologia que
permitia a qualquer agente, fosse
qual fosse a sua localização física,
aceder e pesquisar quaisquer dados
de que precisasse, independente-
mente da distância.
Em resumo, o trabalho de gerir e
conectar o Çuxo de informação
levou ao trabalho de descobrir
como armazená-la para sempre,

A razão por
que está a ler
este livro é eu ter
feito uma coisa
muito perigosa
para alguém na
minha posição:
decidi dizer a
verdade
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