Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019 • 29

MUNDO


Edward
Snowden,
acusado de
espionagem
nos EUA, vive
há seis anos na
Rússia. Ontem
pediu asilo à
França

aquilo que dizemos; mais, até, do
que aquilo que fazemos. Uma vida é
também aquilo que amamos, e
aquilo em que acreditamos. Para
mim, aquilo que mais amo e em que
mais acredito é conexão, conexão
humana, e as tecnologias através
das quais é conseguida. Essas
tecnologias incluem livros, claro.
Mas, para a minha geração, conexão
tem signiÆcado sobretudo a
internet.
Antes que recue, sabedor da
loucura tóxica que infesta esse
vespeiro nos nossos dias,
compreenda que para mim, quando
a conheci, a internet era uma coisa
muito diferente. Era um amigo, e
um pai. Era uma comunidade sem

tinham falhado por não conseguir
encontrar qualquer coisa que
estivéssemos interessados em
comprar tinham agora um novo
produto para vender.
O novo produto éramos Nós.
A nossa atenção, a nossa
actividade, os nossos lugares, os
nossos desejos — tudo a nosso
respeito que revelávamos, tendo ou
não consciência disso, estava a ser
vigiado e vendido em segredo, de
modo a adiar a inevitável sensação
de violação que, para a maior parte
de nós, só agora começa a aparecer.
E esta vigilância continuaria a ser
encorajada de uma forma activa, e
até Ænanciada, por um exército de
governos gulosos do enorme
volume de informação que iriam
obter. Exceptuando o acesso e as
transacções Ænanceiras, poucas ou
nenhumas comunicações eram
encriptadas na primeira década
dos anos 2000, o que signiÆca que
em muitos casos os governos nem
tinham de dar-se ao trabalho de
abordar as empresas para saber o
que os respectivos clientes
andavam a fazer. Bastava-lhes
espiar o mundo sem dizer nada a
ninguém.
O governo americano, em total
desrespeito pela sua carta
fundadora, foi vítima desta
tentação, e uma vez provado o
fruto desta árvore venenosa foi
assaltado por uma febre incurável.
Assumiu, em segredo, o poder da
vigilância massiva, uma autoridade
que por deÆnição afecta mais os
inocentes do que os culpados. Só
quando cheguei a uma
compreensão mais profunda desta
vigilância e dos seus males comecei
a ser perseguido pela consciência
de que nós, o povo — o povo não de
um só país mas do mundo inteiro
—, nunca tivemos direito de voto, e
nem de expressar a nossa opinião,
neste processo. O sistema de
vigilância quase universal tinha
sido criado não só sem o nosso
consentimento, mas também de
uma forma que escamoteava ao
conhecimento, de intenção
deliberada, todos os aspectos dos
seus programas. A cada passo, a
mudança dos procedimentos e as
suas consequências eram
ocultadas a toda a gente, incluindo
a maior parte dos legisladores.
Para quem podia voltar-me? Com
quem podia falar?

só da Constituição dos Estados
Unidos como dos valores mais
básicos de qualquer sociedade livre.
A razão por que está a ler este
livro é eu ter feito uma coisa muito
perigosa para alguém na minha
posição: decidi dizer a verdade.
Coligi documentos da CI interna
probatórios da violação da lei por
parte do governo dos EUA e
entreguei-os a jornalistas, que os
avaliaram e mostraram a um
mundo escandalizado.
Este livro é a respeito do que levou
a essa decisão, dos princípios éticos
e morais que a enformaram, e de
como nasceram... o que signiÆca que
é também a respeito da minha vida.
O que faz uma vida? Mais do que


[O governo
americano]
assumiu, em
segredo, o poder da
vigilância massiva,
uma autoridade
que por deÄnição
afecta mais os
inocentes do que
os culpados

RAFAEL MARCHANTE/REUTERS
fronteiras nem limites, uma voz e
milhões, um território comum
ocupado mas não explorado por
várias tribos que viviam em amizade
lado a lado, e cada um era livre de
escolher o seu nome e a sua história
e os seus costumes. Todos usavam
máscaras, e no entanto esta cultura
de anonimidade-através-da
polinomia produzia mais verdade
do que falsidade, porque era
criativa e cooperativa em vez de
comercial e competitiva. Claro que
havia conÇito, mas era mais do que
compensado pela boa vontade e os
bons sentimentos: o verdadeiro
espírito dos pioneiros.
Compreender-me-á, então,
quando digo que a internet dos
nossos dias está irreconhecível. Não
importa que esta escolha tenha sido
consciente, resultado de um esforço
sistemático por parte de alguns
poucos privilegiados. O impulso
inicial para transformar comércio
em “e-comércio” levou muito
depressa à criação de uma bolha, e
então, logo a seguir ao virar do
milénio, a um colapso. Depois disso,
as empresas perceberam que as
pessoas que entravam online
estavam muito menos interessadas
em gastar do que em partilhar, e que
a conexão humana possibilitada pela
internet podia ser monitorizada. Se
o que a maior parte das pessoas
online queria era poder dizer à
família, aos amigos, a desconhecidos
o que estava a fazer, e em troca saber
o que estavam a fazer a família, os
amigos e os desconhecidos, a única
coisa de que as empresas precisavam
era arranjar maneira de situar-se no
meio destes intercâmbios sociais e
lucrar com isso.
Foi o começo do capitalismo de
vigilância, e o Æm da internet tal
como eu a conhecia.
Ora bem, foi a web criativa que
colapsou, e inúmeros sites
individualizados, criativos e difíceis
fecharam portas. A promessa de
conveniência levou as pessoas a
trocar os seus sites pessoais — que
exigiam uma manutenção
constante e trabalhosa — por uma
página no Facebook e uma conta
Gmail. Era fácil tomar a aparência
de propriedade pela sua realidade.
Poucos de nós o compreenderam
na altura, mas nada daquilo que
passaríamos a partilhar continuaria
a pertencer-nos. Os sucessores das
empresas de e-comércio que
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