Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019 • 33

O Festival de Música de Sintra diver-
siÆcou ultimamente a sua oferta. Os
dois eventos a que pudemos assistir
são um bom exemplo da nova ambi-
ção do festival e dos cruzamentos que
ela pode propiciar.
Em primeiro lugar, de João Domin-
gos Bomtempo (1775-1842). Optou-se
por uma bem mais exigente reposi-
ção de quatro dos seus Responsórios
de Matinas para as exéquias da rainha
D. Maria I (Mattutino dei Morti), com-
postos em 1822. A execução da pri-
meira parte da obra deu-se num espa-
ço de concerto e não num espaço
religioso; isso é coerente com o pro-
pósito de suscitar uma apreciação
primariamente artística da partitura.
A necessidade de convencer o ouvin-
te do valor da obra requer, em con-
trapartida, um cuidado especial com
a interpretação musical. Infelizmen-
te, esta Æcou muito aquém do desejá-
vel. As partes corais não foram traba-
lhadas com o necessário gosto e aÆn-
co, de maneira a modelar e a dar
direcção às linhas vocais e a enrique-
cer a paleta dinâmica, praticamente
reduzida a fortíssimo e piano. Entre
os solistas, Catia Morezzo encantou
pelo timbre cheio e pela intenciona-
lidade, mas não soube lidar com as
passagens rápidas; Luís Rodrigues
adoptou uma veia histriónica que, no
contexto de um trio de barítonos, se
revelou completamente desadequa-
da. Estas insuÆciências Æzeram com
que o primeiro responsório soasse
algo chão, mas, apesar de tudo, não
impediram que se apreciasse a gran-


de qualidade inventiva dos responsó-
rios II-IV.
Em contraste, o recital da soprano
Ana Quintans e do pianista Filipe
Raposo foi um êxito completo, com
um único senão: o caos no tratamen-
to do programa. Se o músico é livre
de modiÆcar o alinhamento Ænal de
um recital, o programa impresso
deve estar isento de contradições e
o público tem direito a ser avisado
das alterações de última hora. Em
suma, o programa impresso conti-
nha duas versões do alinhamento
musical e aquela que foi realmente
seguida pelos artistas desviou-se fre-
quentemente da versão primitiva na
ordem e na escolha dos excertos can-
tados, e também da intermédia, de
onde desapareceram duas peças de
Oèenbach e de Joni Mitchell, substi-
tuídas por Je suis comme je suis, de
Jacques Prévert e Joseph Kosma.
Como o leitor já deve ter depreen-
dido, este recital foi tudo menos
vulgar: a organização deu carta
branca a Ana Quintans, reputada
intérprete de música antiga, para
apresentar no Palácio de Queluz um
recital com acompanhamento de
piano, com repertório inspirado na
Ægura feminina, que poderia vir até
à actualidade.
E assim foi: dez peças do século
XVII (Merula, Strozzi, Cavalli, Pur-
cell, Lambert, Charpentier), uma
ária de opereta (Oèenbach) e can-
ções do século XX ligadas, com a
excepção de Charm (Britten), ao
cabaret ou ao musical (Weill, Berlin,
Bernstein, Misraki, Barbara, Kosma).
Entre elas, obras--primas à espera da
redescoberta. Em todas, Ana Quin-
tans pôde deliciar a audiência com
uma rara mistura de poder expres-
sivo, Çuência e sensibilidade, respei-
tando cada língua e cada estilo nos
limites da coerência da postura
vocal. Mas o resultado, com muitas
contaminações, não teria sido o mes-
mo sem Filipe Raposo, pianista
capaz de tornar alegremente jazzís-
tico Oft she visits de Purcell e de
encher de contraponto a textura
vazia da canzonetta Hor ch’è tempo di
dormire de Merula, fazendo jus ao
mesmo tempo à exigência instru-
mental de Benjamin Britten e à graça
compassada de Irving Berlin.
O resultado, maravilhoso, desta
conjunção de talentos, clama por
múltipla reposição, gravação e des-
envolvimento... Manuel Pedro
Ferreira

Crítica de Música


Mattutino dei Morti (I)


Festival de Sintra
João Domingos Bomtempo,
Orquestra Sinfónica Portuguesa/Coro
do TNSC e solistas
dir. Graeme Jenkins
12 Setembro, 21h30
Centro Cultural Olga Cadaval
Meia sala


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Vozes que tentam,


e uma voz no seu


esplendor


CULTURA


Women under the influence


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Festival de Sintra
Ana Quintans e Filipe Raposo
15 de Setembro, 18h
Palácio Nacional de Queluz
Sala cheia

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