Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1

34 • Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019


Ric Ocasek, o músico discreto


que sintetizou novos mundos pop


Ric Ocasek sabia o que queria
desde que ouvira Buddy Holly na
pré-adolescência, ritmo a
chocalhar o corpo e canto meio
soluçado a libertar a imaginação.
Estávamos em 1958. Vinte anos e
muitas bandas depois, Ocasek
anunciou-se ao mundo. The Cars,
o álbum de estreia da banda que
fundara em 1976, abraçava a new
wave, cruzava arranjos de
sintetizadores com guitarras à
Byrds e cintilância Roxy Music —
tudo coberto com uma apurada
sensibilidade pop. Durante dez
anos, as canções de Ocasek foram
parte determinante da paisagem
musical. As canções: para ele,
eram o início e o Æm de tudo.
Na tarde do último domingo, o
autor de Drive, Just what I needed ou
Shake it up, o produtor dos Suicide,
dos Bad Brains, dos Weezer, dos
Guided by Voices, das Le Tigre ou
dos No Doubt foi encontrado sem
vida na sua residência em
Manhattan. As causas da morte não
foram reveladas.


Músico, pintor, poeta
Filho de um analista informático
da NASA, Ric Ocasek cresceu em
Baltimore e mudou-se com a
família para Cleveland aos 16 anos.
As memórias da infância e
adolescência não eram as
melhores. Numa entrevista à
Rolling Stone, em 2011, contou que,
quando comprou o primeiro disco
de Bob Dylan, o pai exigiu-lhe que
nunca mais ouvisse aquela música
em casa — o mesmo pai que o
recriminava quando levava amigos
negros a casa: “Como te atreves a
trazer um negro ao nosso bairro?”
Abandonou precocemente a
universidade e, com Benjamin
Orr, futuro baixista dos Cars
e voz principal em algumas das
canções mais emblemáticas da
banda (Drive, Just what I needed),
iniciou um percurso que
passou por várias encarnações
antes de chegar à banda a que
Æcará para sempre associado.


Vídeo do Ano nos primeiros MTV
Awards, vencendo a concorrência
de Thriller, de Michael Jackson.

InÅuências eternas
Durante os dez anos da primeira
existência da banda, os Cars foram
um sucesso de vendas (mais de
vinte milhões de discos vendidos,
só nos Estados Unidos), criadores
respeitados pela crítica e uma
banda cuja inÇuência se revelaria
surpreendentemente abrangente.
Na sua morte, os tributos chegam
de bandas de que foi produtor,
como os Weezer, de músicos com
quem trabalhou (Nile Rodgers,
Courtney Love), de Billy Idol, de
Flea, dos Red Hot Chilli Peppers,
do produtor e rapper El-P ou de
Brandon Flowers, dos The Killers.
Carl Newman, dos canadianos
New Pornographers, escreveu no
Twitter: “Nunca deixarei de imitar
o primeiro álbum dos Cars. A sua
inÇuência permanecerá para
sempre comigo.”

À estreia homónima dos Cars
sucederam-se Candy-O (1979),
Panorama (1980), Shake it Up
(1981), Heartbeat City (1984) e Door
to Door (1987). A banda terminaria
após a digressão de promoção a
este último. Se Ric Ocasek,
introspectivo e pouco confortável
com a vida de palco, já se sentia
naturalmente intimidado com as
grandes digressões, a que se
sucedeu a Door to Door, com a
banda a viajar para os concertos
separadamente, tornou inevitável
a separação.
Ocasek dedicar-se-ia então à
carreira a solo, que iniciara em
1982, com Beatitude, e à produção
(estreara-se em 1980, com o
segundo álbum dos Suicide). Em
2011 reuniu os Cars, já sem
Benjamin Orr, que um cancro
pancreático levara em 2000, para a
gravação do álbum Move like this.
Pelo meio foi vice-presidente de
A&R da Elektra, cargo em que não
durou mais que um ano — o rumo
que quis dar às novas contratações,
tentando assinar Devendra
Banhart ou os Death Cab for Cutie,
não foram propriamente do agrado
dos seus superiores.
Casado três vezes, a última das
quais com a modelo e actriz
Paulina Porizkova, que conhecera
nas Ælmagens do vídeo de Drive e
com quem formou um casal até
2017 (foi Paulina que encontrou o
seu corpo já sem vida) e pai de seis
Ælhos, Ric Ocasek foi um esteta da
canção, um criador hábil na
conjugação de diferentes
universos musicais. “De certa
forma, julgo que estamos sempre a
compor a mesma canção e não há
problema nenhum nisso”, dizia
em 1987 ao New York Times. “Os
japoneses andam a fazer as
mesmas peças há dois mil anos, e
os haiku são habitualmente sobre
os mesmos temas, ligados à
natureza. Julgo que é um processo
igualmente criativo tentar trazer
nova luz a uma velha situação, ao
romance.” Os seus dez anos nos
Cars comprovam-no sem margem
para dúvidas.

Ric Ocasek 1944-2019 Aprimorou a sua arte na sombra antes de, com os Cars, fundir new wave, synth-pop


e rock’n’roll e os transformar numa das bandas essenciais dos anos 1980. Morreu domingo, aos 75 anos


Obituário


Mário Lopes


[email protected]

Em 1973, inspirado pelos Crosby,
Stills & Nash, tentara o folk-rock
nuns Milkwood que deixaram
como legado How’s the Weather,
álbum esquecido (ontem e hoje).
Depois dos Milkwood chegaram
Richard and the Rabbits, depois
deles os Cap n’Swing e, em 1976,
nasceram oÆcialmente os Cars.
Eram formados por Ric Ocasek
(vocalista, compositor e guitarra
ritmo), por Benjamin Orr, pelo
guitarrista Elliot Easton, pelo
teclista e saxofonista Greg Hawkes
e por David Robinson, baterista
que pertencera anteriormente aos
Modern Lovers de Jonathan
Richman. Uma banda com líder
natural e incontestado. “Nunca me
juntei a uma banda”, recordava
Ocasek na entrevista supracitada.
“Fui sempre o primeiro membro e
eles tinham sempre de tocar as
minhas canções. Não iria tocar as
de mais ninguém.” Tudo isto era
pacíÆco entre os restantes Cars: “A
composição de canções, de uma

forma profunda, é o instrumento
de Ric. É natural que ele seja o sol à
volta do qual gravitam os restantes
planetas.”
Também pintor e poeta com obra
publicada (a colecção de poesia
Negative Theater foi publicada em
1992), o guitarrista adaptou o apelo
intemporal da pop clássica e do
rock’n’roll à modernidade do seu
tempo, quer ela fosse representada
pela synth-pop, quer se
manifestasse na new wave que
sucedeu à explosão punk e na qual
os Cars tiveram papel determinante
— curioso que o futuro produtor dos
Suicide, punks minimalistas,
electrónicos, tenha escolhido como
primeiro produtor dos Cars o
homem responsável pelo som
polido dos Queen, Roy Thomas
Barker. Ao mesmo tempo, a banda
mostrou-se consciente da
importância da construção de um
imaginário visual, essencial na
alvorada da era da MTV — You might
think foi distinguido em 1984 como

AARON JOSEFCZYK; / REUTERS

CULTURA

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