Público - 17.09.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 17 de Setembro de 2019 • 37

INICIATIVAS


Jaime Cortesão: um médico na frente


Ocidental da I Grande Guerra


Memórias da Grande Guerra não
foi a primeira incursão de Jaime
Cortesão na temática da Primeira
Guerra Mundial. Em Junho de
1916, também na Renascença
Portuguesa, tinha publicado um
folheto intitulado Cartilha do
Povo. 1.º Encontro. Portugal e a
Guerra.
Na tradição iniciada por José
Falcão em 1884, e apropriando-se
do título e das personagens João
Portugal e José Povinho, esta obra
foi publicada sem indicação de
autor, embora nas “Memórias”,
quando refere as obras “do
Autor” se indique Cartilha do
Povo, I-II, 1916. Ao contrário da de
José Falcão, que propugnava o

advento do regime republicano, a
de Cortesão apenas teve uma
única edição, se bem que com uma
grande tiragem, comprada pelo
Ministério de Guerra.
Editadas pela Renascença
Portuguesa em 1919, tinham 247
páginas e 33 gravuras, bem como
um mapa desdobrável “da região
do Norte da França onde
operaram as nossas tropas”,
estando o manuscrito do livro e
gravuras em depósito na BNP,
Espólios Reservados.
A capa reproduz uma água-forte
de Adriano Sousa Lopes
(1879-1944), Duas Ordenanças de
Infantaria 11.
Outros autores de livros sobre
a Grande Guerra utilizaram obras
deste artista para ilustrar capas
dos seus livros (André Brun,
Américo Olavo, Augusto
Casimiro). Ao contrário de outras
publicações sobre o tema, esta
obra apenas veio a ter uma
segunda edição 50 anos depois,

em 1969, editada pela Portugália
e integrada nas Obras Completas
de Jaime Cortesão-17.
Cortesão não participou
diretamente na Batalha de La Lys,
por se encontrar hospitalizado.
Contudo, a sua entrada nas
“Memórias” relativa a 9 de abril dá
uma ideia clara, vista da
retaguarda, do que se passou na
frente, incluindo frases que
perduram até hoje.
No meio da confusão
generalizada, Cortesão não se
esquece de dar nota política de
unidade guerrista, quando
invoca o encontro com o capitão
Almiro de Vasconcelos, herói
condecorado e monárquico
convicto: “Os olhos estão
cerrados, mas a contractura
violenta dos masséteres, o latejar
das têmporas e o premir raivoso
dos beiços, de comissuras caldas,
dizem o esforço de não gritar. É o
capitão Almiro de Vasconcelos.
Um enfermeiro conta-me em voz

baixa que tem uma coxa
esfacelada.”
Para contrabalançar, invoca
de seguida o encontro com o
Ælho do chefe da Revolução de
14 de maio de 1915, o alferes
Jaime Leote do Rego: “As camas
estão cheias. Então lá do meio
um gesto brando acena-me.
Avanço até ao leito, donde sai
um meio corpo inquieto e uma
cabeça de face inchada, os
queixos atados, deixando ver
junto da boca o extremo duma
larga ferida. Custa-me a
reconhecê-lo, tão deformado e
branco tem o rosto. É o alferes
Jaime Leote do Rego. E
baixinho, que o bulir dos lábios
abre-lhe dores na face, conta-me
o seu caso.”
Bom, deixemos o prefácio e
vamos à leitura, que foi para isso
que Cortesão o escreveu.

Estudioso da época da I Grande
Guerra

24 de Setembro
Memórias da Grande Guerra
Jaime Cortesão
01 de Outubro
Nos Mares do Fim do Mundo
Bernardo Santareno
08 de Outubro
A Noite e a Madrugada
Fernando Namora
15 de Outubro
A barba em Portugal
Leite de Vasconcelos
22 de Outubro
O País das Uvas
Fialho de Almeida
29 de Outubro
Eterno Feminino Júlio Dantas
05 de Novembro
As Pupilas do Sr. Reitor
Júlio Dinis
12 de Novembro
Por ahi fora Brito Camacho
19 de Novembro
Vindima Miguel Torga
26 de Novembro
O delírio do ciúme
Miguel Bombarda
3 de Dezembro
Na luz do fim Graça Pina
de Morais
10 de Dezembro
Um estio na Alemanha
Abel Salazar
17 de Dezembro
Contos Durienses
João de Araújo Correia


Um retrato completo da Grande Guerra


Passado um século sobre a
Grande Guerra e terminadas as
comemorações durante as quais
foram publicados vários estudos
e obras, podem os portugueses
ler, se ainda o não Æzeram, um
livro fundamental sobre aquela
catástrofe mundial e
particularmente sobre a
tragédia portuguesa. ReÆro-me
a Memórias da Grande Guerra,
do então capitão-médico Jaime
Cortesão, que nos legou um dos
melhores testemunhos daquele
triste acontecimento. Muitos
escreveram então sobre isso
como o general Ferreira
Martins, médicos como
Reynaldo dos Santos, Américo
Pires de Lima, Egas Moniz, Jorge
Monjardino. Mas todos, muito
longe do retrato histórico,
psicológico, político, solidário,
analítico e crítico de Cortesão.

Tal como Reynaldo foi dos
primeiros portugueses
pensantes, que perceberam que
não podiam escusar-se de se
juntarem aos aliados no
combate à gigantesca pata
alemã. Ambos partiram para a
guerra como voluntários,
Reynaldo indo trabalhar nos
hospitais ingleses e Cortesão
integrado no CEP, no 23.º
Regimento de Infantaria e
trabalhando na frente de
combate. Duas experiências
diferentes, mas ambas
importantes, especialmente a
de Cortesão no que respeita ao
registo histórico. Mas este livro
não é só um registo factual da
guerra vivida onde ela se
travava, mas um retrato
primoroso do homem que ele
era e sempre foi durante toda a
vida, considerando como
fundamentais a verdade, o bem
e a beleza. Médico desde 1909
partiu para a guerra com 34
anos, deixando a sua família que
amava e a quem se justiÆcou
neste livro, dedicando-lho com
estas palavras — “A minha
mulher e a meus Ælhos. Àquela,

cujo amado Amor foi o esteio
mais corajoso nas grandes horas
dolorosas. Àqueles para quem
anseio, mesmo à custa da minha
vida, uma vida mais bela. Para
vós a minha melhor obra d’Arte,
que é a própria vida feita beleza
suprema, na aspiração e pelo
sofrimento.”
Mas a sua faceta da escrita, da
cultura e da política, já o
acompanhava enquanto
estudante, criando com
Leonardo Coimbra a Nova Silva e
já médico, participara na criação
com Teixeira de Pascoaes das
revistas Águia e Renascença
Portuguesa. Esta sua ligação à
escrita, os livros já publicados e
a sensibilidade e lucidez que
sempre manteve, desaguou por
inteiro nas suas Memórias da
Grande Guerra.
Ali toca em todos os pontos,
desenhando o que estava mal e
feito à pressa, a impreparação dos
militares e de quem os dirigia e
sobretudo a incapacidade de
reconhecerem o mérito a quem o
tinha, entregando a acção decisiva
a quem apenas tinha mais galões,
salientando a qualidade do

soldado comum, das berças e
analfabetos e sobretudo aquilo
que os moldava e o que a guerra
fez de todos eles.
Dum soldado lembra a sua frase
— “Isto já não é corpo, nem é
nada. Agora é só coragem!” E
escrevendo sobre si e sobre todos,
escreveu — A guerra armou-me
com uma alta e aguda lança. Mais
do que nunca eu quero combater.
O que o nosso soldado era,
galhofeiro e manhoso, foi-se.
Importa saber não o que era, mas
o que é, depois da guerra, porque
a guerra educa. É a mais intensiva
das escolas. Depois da catástrofe
de La Lys e da debandada
possível, da desorganização e do
abandono inglês, um grupo de
portugueses valentes e onde
Cortesão foi um dos líderes,
organizaram-se e dirigiram-se a
caminho do inimigo de peito
aberto e vontade de vencer ou
morrer, mas felizmente, a passos
da frente e dos combates, foi
assinado o Armistício.
Por favor, leitores, não percam
uma palavra que seja.

Coronel-médico

FOI RESPEITADA A OPÇÃO ORTOGRÁFICA DOS AUTORES.

Carlos Vieira Reis


Emílio Ricon Peres

Free download pdf