Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
Público • Sexta-feira, 13 de Setembro de 2019 • 31

MUNDO


Fundador do Forum Demos

E se as razões que colocaram no
poder os populistas identitários
forem as mesmas que os podem
tirar do poder? As recentes
derrotas de Boris Johnson e
Matteo Salvini são indícios de que
o feitiço se pode virar contra os
feiticeiros.
Anunciar hoje a morte da
democracia liberal é tão
prematura, como foi a do seu
triunfo deÆnitivo há 30 anos, com
o colapso da alternativa
comunista, como alerta Yascha
Mounk na revista Foreign Affairs.
Uma história é a dos líderes
populistas identitários na
oposição, outra, bem diferente, é
a de quando chegam ao governo.
Os populistas prometeram
devolver o poder ao povo e
autoproclamaram-se porta-vozes
da indignação popular perante a
“arrogância das elites liberais ao
serviço dos interesses da alta
Ænança”. No poder, mostram uma
enorme incompetência, o seu
autoritarismo torna-se evidente e
a corrupção aumenta, como
mostra um estudo recente. Os
governos populistas beneÆciam os
hiper-ricos que diziam combater,
como é o caso de Donald Trump.
Já o caso do Brasil é paradoxal,
porque Jair Bolsonaro nunca
escondeu que estava ao serviço de
uma das elites mais vorazes e
predadoras do mundo.
No poder, os populistas
identitários tomam medidas para
desconstruir o Estado de direito,
controlar os órgãos de
comunicação e monopolizar o uso
das redes sociais, perseguindo os
contrapoderes que aí se
exprimem.
Porém, é precisamente aqui que
o feitiço se pode virar contra os
feiticeiros. Quanto mais
autoritários se tornam os
regímenes, mais sectores da
população sentirão as suas
liberdades em risco. Os cidadãos
“empoderados” tenderão, então, a
fazer do novo poder o objeto da


sua contestação. A derrota do
partido de Recep Erdogan, em
Istambul e Ancara, são exemplo de
que os cidadãos começam a
compreender o que se esconde por
trás de discursos identitários. As
diÆculdades de Putin, apesar da
brutalidade da sua repressão, são
outro.
Boris Johnson não esperou
consolidar o poder para aÆrmar a
sua aversão à democracia liberal.
A suspensão do Parlamento e a
expulsão de 21 deputados do
Partido Conservador, para
impedir que os deputados
pudessem travar o seu projeto de
abandonar a União Europeia sem
acordo, expuseram-no como um
populista autoritário. A campanha
demagógica do “Brexit” tinha sido
feita em torno de devolver o poder
ao povo e voltar a fazer do
Parlamento britânico o centro do

Opinião


Álvaro Vasconcelos


poder democrático, raptado,
segundo Boris, pela União
Europeia. Agora é ele quem retira
o poder ao Parlamento invocando
o poder do povo representado por
um homem só: o próprio Boris
Johnson. O populismo autoritário
de Boris enfrenta a oposição de
todos os partidos políticos e de
muitos membros do seu partido.
Os conservadores britânicos
mostraram muito mais coragem
política e convicção democrática
do que os seus homónimos
americanos (do Partido
Republicano) que, salvo raras e
honrosas exceções, têm aceitado
todos os atropelos de Trump.
Em Itália, o líder da
extrema-direita, Salvini, que tinha
chegado ao Governo em coligação,
usou da sua posição como ministro
do Interior para, com um discurso
populista e racista antimigrantes,

O feitiço contra os feiticeiros


ALESSANDRO BIANCH/REUTERS

O que nos mostram


o Reino Unido


e a Itália é que,
perante uma

ameaça séria


de conquista do


poder por líderes
populistas,

as forças


democráticas, caso


se unam, podem
criar-lhes enormes

diÄculdades


subir nas sondagens. Quando
pensou que podia ganhar as
eleições, sozinho, fez cair o
Governo. Lançou-se de imediato
em campanha eleitoral convencido
de que nada travaria a sua ascensão
e, sem esconder o seu objetivo,
declarou: “Eu peço aos italianos
todos os poderes” Ora os eleitores,
“empoderados”, não querem dar,
seja a quem for, todo o poder.
Chovem acusações de
iliberalismo sobre Boris e Salvini e
o seu futuro político tornou-se
mais incerto. Mas, atenção, não
signiÆca que estejam derrotados.
A ameaça que Salvini representa
para a democracia em Itália é a
mais grave, desde a derrota do
fascismo. Foi isso que levou a que
o 5 Estrelas e o Partido
Democrático se unissem. Para
impedir um regresso triunfal de
Salvini é preciso que o Governo se
mantenha unido e seja capaz de
delinear um horizonte de
esperança às classes médias
angustiadas com o futuro.
No Reino Unido, é preciso voltar
a ouvir os eleitores, através de um
novo referendo, para legitimar um
novo acordo ou a permanência na
União. A evolução do Labour e a
unidade que construiu com as
outras correntes políticas na
oposição ao golpe de Boris torna
um novo referendo mais provável.
A União Europeia tem de fazer a
sua parte, isto é, tem de participar
na desconstrução do golpe de
Boris, aceitando o adiamento do
“Brexit” pedido pelo Parlamento.
Tem também de demonstrar que o
período de austeridade terminou
e que compreendeu que é
necessário um novo ciclo de
política económica com uma forte
componente social e ecológica.
O que nos mostram o Reino
Unido e a Itália é que, perante uma
ameaça séria de conquista do
poder por líderes populistas, as
forças democráticas, caso se
unam, podem criar-lhes enormes
diÆculdades.
Mas não bastará unirem-se.
Terão, com a coragem que tem
faltado, de desconstruir o discurso
identitário e racista da
extrema-direita e reaÆrmar os
valores da liberdade e da
hospitalidade.
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