Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
34 • Público • Sexta-feira, 13 de Setembro de 2019

TECNOLOGIA


Quando a comida é uma doença,


Há quem escolha as redes sociais para partilhar a sua história


com perturbações alimentares. Pode funcionar como uma


terapia. Mas há riscos em desabafar num mundo cheio de


opiniões, críticas e trolls


F

oi por volta dos 14 anos
que Joana Marques
começou a luta contra os
distúrbios alimentares.
Já adulta, decidiu criar
uma página no Facebook
para narrar a sua expe-
riência com a bulimia,
anorexia e ansiedade.
Faz parte de uma comu-
nidade crescente de pessoas que
recorre às redes sociais. Mas falar
abertamente sobre ter medos, obses-
sões e rituais em torno de comida
atrai todo o tipo de comentários.
Joana recorda-se bem de uma das
frases que recebeu quando a página
começou a ganhar popularidade: “És
tão boa, tão boa que mesmo dobrada
sobre a sanita a vomitar comia-te
toda.”
“Não é fácil dar a cara sobre estes
temas”, explica Joana, que tem hoje
36 anos e é professora de ioga. “Há
pessoas muito desagradáveis na
Internet. Só que, ainda assim, as van-
tagens de partilhar a minha história
na Internet são maiores. O blogue
ajudou-me a perceber que não sou a
única, e agora ajuda a esclarecer
alguns mitos sobre o tema e é uma
base de apoio para quem precisa.”
As publicações de Joana — numa
página chamada Tripolaridades,
seguida por mais de 12 mil utilizado-
res do Facebook — funcionam com
um diário: desde visitas constantes
ao dentista (“vomitar repetidamente
dá cabo dos dentes”, escreveu numa
das entradas sobre as consequências
da doença), ao prazer que tem a
vomitar, à solidão que sente por ter
de evitar alguns compromissos
sociais (“em Portugal, as pessoas
acreditam que o convívio tem de ser
feito à mesa”). Pelo meio, há publi-
cações sobre ioga, sobre novos pro-
jectos proÆssionais e sobre Sebastião,
um rafeiro que adoptou em 2018.
A página arrancou por “motivos
egoístas”, diz Joana. “Queria parar
de estar sempre a repetir a minha
história. Tornou-se um espaço que
podia mostrar a familiares e conhe-
cidos à medida que me ia sentindo

mais confortável”, explica. A rela-
ção fora do normal com a comida
começou em jovem, numa altura
em que queria perder uns quilos a
mais. “Vinte anos depois, queria
desesperadamente perceber se
havia alguém em Portugal a passar
pelos mesmos problemas e a falar
deles na minha língua.”
Embora as redes sociais sejam
muitas vezes alvo de críticas por pro-
moverem o culto da imagem e dietas
impossíveis, tem aumentado o
número de utilizadores que mostram
o dia-a-dia de quem está a tentar
recuperar de distúrbios alimentares.
Com mais de 1,4 milhões de publica-
ções, #EDRecovery e #edwarrior

mentar e a escolher a Internet para
o fazer. Recentemente, a académica
recolheu 200 testemunhos de onze
sites e fóruns públicos sobre trans-
tornos alimentares — tanto com con-
teúdo a promover práticas associa-
das às perturbações alimentares,
como com utilizadores a falar sobre
como se pode sair desse mundo.
“Um dos temas mais discutidos é
como as pessoas que não têm distúr-
bios alimentares ignoram pedidos de
ajuda que os utilizadores deste tipo
de sites consideram óbvios — falo de
queixas de cabelo a cair ou frio exces-
sivo”, diz Williams. “Na adolescên-
cia, é normal médicos e pais atribuí-
rem os problemas à idade e dizerem
que a ansiedade é normal. Os chama-
dos influencers de recuperação con-
seguem mostrar a quem está a passar
pelo problema que não estão sozi-
nhos e que podem melhorar.”

Milhares de seguidores
A nível internacional, nomes de
inÇuenciadores populares incluem
Rebecca Leung, natural de Hong
Kong, que começou um canal no
YouTube em 2018 para falar sobre o
seu passado com distúrbios alimen-
tares (hoje tem 44 mil seguidores no
Instagram, e 138 mil seguidores no
YouTube), e a britânica Elzani, que
começou a publicar regularmente no
Natal de 2018 — no meio de mais uma
recaída na doença — e hoje junta 34
mil seguidores.
“Nem toda a gente quer partilhar
a sua história, mas acho importante
que se crie um canal quando já se
está a meio caminho”, diz o norte-
americano Christopher Henrie, com
mais de nove mil subscritores, que
está no YouTube desde os 16 anos.
Hoje tem 21. Antes de criar o seu
“canal de recuperação” chegou a
frequentar sites a gloriÆcar os distúr-
bios alimentares — são conhecidos
na gíria por “pro-mia”, de bulimia, e
“pro-ana”, de anorexia. “Não acho
que causem distúrbios por existir.
Vê-se que os utilizadores já não estão
bem, e acho que se juntam porque
querem alguém que os perceba... Os
sites a promover a recuperação são
uma alternativa.”
Tal como Joana, a relação proble-

Karla Pequenino


Quando se aguenta


uma caixa de


comentários no


YouTube, aguenta-se


quase tudo
Livia Adams
Autora do canal AlwaysHungry

mática de Henrie com a comida
começou ainda jovem: tinha 12 anos
e era vítima de bullying na escola.
“Procurava algo que pudesse contro-
lar”, resume. Criou conta no YouTu-
be quando foi obrigado a deixar o
tratamento a meio. “Esgotei o orça-
mento do seguro de saúde, mas sen-
tia necessidade de um grupo de
suporte.” Tinha começado a seguir
vários blogues e vídeos de pessoas
na mesma situação, mas todos de
raparigas. “Não havia nada com um
rapaz. Foi por isso que criei um
canal, para mostrar que os distúrbios

(diminutivos em inglês para “recu-
peração de distúrbio alimentares” e
“guerreiro dos distúrbios alimenta-
res”) são exemplos de palavras-cha-
ve populares — as chamadas hashtags
— de quem usa o Instagram para
desabafar.
“As pessoas orientam-se muito
para a Internet porque sentem que
ninguém no mundo real percebe
aquilo porque estão a passar”, justi-
Æca ao PÚBLICO Emily Williams,
uma investigadora canadiana a
explorar o processo que leva alguém
a admitir que tem um distúrbio ali-

Joana Marques, 36 anos,
começou em 2017 uma página
no Facebook

podem surgir em qualquer pessoa,
independentemente do género, ida-
de ou orientação sexual.”
Henrie admite, no entanto, ter
criado a conta cedo demais. “Acho
que às vezes isso me prejudicou”,
diz. “Já me senti pressionado para
dizer e mostrar que estou bem, mes-
mo quando não estou...” Depois,
entre comentários de apoio e men-
sagens de agradecimento, há as crí-
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