Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
Público • Sexta-feira, 13 de Setembro de 2019 • 35

a Internet é um remédio amargo


ticas que lhe chegam por ser um
rapaz a falar sobre o tema ou por
“não parecer assim tão magro”.
Para alguns, lidar com comentá-
rios mais negativos faz parte do pro-
cesso de recuperação. “Quando se
aguenta uma caixa de comentários
no YouTube, aguenta-se quase
tudo”, argumenta a alemã Livia
Adams, 177 mil seguidores. Nas redes
sociais, Livia, 24 anos, é conhecida
pela alcunha AlwaysHungry (inglês
para “sempre com fome”). O objec-
tivo do canal, em inglês, é mostrar
que não acontecem tragédias quan-

Foi o canal online, no entanto, que
a pôs em contacto com vários proÆs-
sionais em todo o mundo, tornando-
se uma assistente de recuperação
online — alguém que os pacientes
podem contactar quando querem
desabafar com alguém que já tenha
passado pelo mesmo.
“Tento utilizar um humor autode-
preciativo para não glamorizar a
doença. Temos de saber rir de nós
próprios. Vamos ser sinceros, todos
fazemos coisas anormais com comi-
da”, diz Findlay.

Difícil ganhar dinheiro
Uma das grandes diferenças dos
influencers “de recuperação” face a
outros é que é não é hábito ganha-
rem dinheiro. Particularmente, se
usarem o YouTube. “Ninguém pode
achar que fazemos isto por dinhei-
ro. Desde que comecei em 2014
recebi três cheques do YouTube”,

book exibe um aviso no topo da pági-
na a perguntar “Precisa de ajuda?”.
Joana Marques argumenta que é
preciso conhecer a perspectiva dos
doentes. “É importante falar do pon-
to de vista dos bulímicos e dos ano-
récticos, perceber os comportamen-
tos que têm”, diz a autora da página
Tripolaridades. “A minha página ain-
da funciona muito através de men-
sagens pessoais. Contrariamente ao
que acontece noutros países, acho
que em Portugal há muito precon-
ceito em falar sobre o tema.”
Apesar dos milhares de seguidores
e de no ano passado Joana ter parti-
cipado no programa de televisão da
apresentadora Júlia Pinheiro, na SIC,
ainda são poucas as pessoas com dis-
túrbios alimentares que comentam
publicamente online, com o nome e
fotograÆa.
Filipa Jardim da Silva, psicóloga
clínica e coach, nota que o cenário
começa a mudar: “Em Portugal exis-
te um número crescente de pessoas
a falar sobre distúrbios alimentares.
Acontece que muitas vezes não lhe
dão esse nome. Ou porque não
sabem tecnicamente a designação
correcta, ou porque o nome pode
trazer um rótulo associado.”
“Não conseguia parar de comer”
ou “Equivalia o meu valor pessoal ao
peso” são relatos que encontra cada
vez mais na Internet. Alerta, no
entanto, que antes de expor a histó-
ria pessoal online é preciso estar
preparado para a crítica “nem sem-
pre construtiva nas redes sociais”.
Para Joana Marques, é fundamental
ter um “sentido de autopreservação”
durante todo o processo. Além de
saber ignorar comentários negativos,
diz que é preciso saber quando parar
de publicar. “Estes blogues têm de ser
genuínos”, frisa. “A certa altura tinha
pessoas a perguntar ‘Não tens publi-
cado nada? Está tudo bem?’” A gota
de água foi quando a própria mãe lhe
perguntou o mesmo. “Foi aí que deci-
di: vou parar durante uns tempos.”
Apesar da pausa, a página conti-
nua online. “Ter material disponível
em português é fundamental. Por
muito que se possa ler e perceber
inglês, é diferente poder ler e parti-
lhar sobre um problema na língua
que nos é mais próxima”, explica
Joana. “Para muitos ter a oportuni-
dade de partilhar estes problemas
nas redes sociais é como levantar a
tampa da panela de pressão.”

RUI GAUDÊNCIO

[email protected]

do se come o triplo das calorias
necessárias num dia ou se come uma
pizza inteira de uma vez.
“Quando comecei a tentar resolver
os meus problemas com a alimenta-
ção apaixonei-me por vídeos e publi-
cações de pessoas que partilhavam
aquilo que comiam. Não queria ver
as histórias das pessoas que estão a
sofrer para comer uma bolacha. Que-
ria ver vídeos das pessoas que
comiam o pacote inteiro porque
podiam”, conta ao PÚBLICO. “Os
meus vídeos foram o último passo
para realmente dizer ‘Não quero

saber! Posso comer o que quero.’”
Mas alguns inÇuenciadores aler-
tam para a possibilidade de este con-
teúdo prejudicar mais do que ajuda.
“Com vídeos e imagens há uma enor-
me tendência para comparar proble-
mas e achar que não se está ‘doente
o suÆciente’, ou que só há uma forma
de comer bem”, justiÆca a australia-
na Mia Findlay, 31 anos, que soma 49
mil subscritores no YouTube depois
de seis anos a partilhar a sua história.
“É a parte obsessiva da doença.
QuantiÆcar e qualiÆcar tudo. Calo-
rias, peso, número de refeições...”

Por muito que se


possa ler e perceber


inglês, é diferente


poder ler e partilhar


sobre um problema


na língua que nos é


mais próxima
Joana Marques
Autora da página Tripolaridades

revela o norte-americano Chris-
topher Henrie.
Em 2017, com o aumento de publi-
cações sobre o tema, o YouTube
intensiÆcou a sua política sobre o
conteúdo que não pode ter anún-
cios, ou que só pode ter publicidade
limitada — é o caso de vídeos sobre
distúrbios alimentares, violência
doméstica, suicídio ou uso de armas.
Já o Instagram esconde o conteúdo
sobre distúrbios alimentares atrás de
um Æltro (é preciso conÆrmar que se
quer ver publicações sobre temas
como bulimia ou anorexia). O Face-
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