Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
Público • Sexta-feira, 13 de Setembro de 2019 • 37

FOTOS: MIGUEL MANSO

Curador (em pé, à esq. na foto)
com os quatro artistas. As peças
na Underdogs revelam
preocupações políticas: peça
de Thiago Nevs (em cima, à dir.);
objectos de Coxas; desenho de
Sosek na página da esquerda

por semana, ainda sem saberem o
que iriam fazer.
“Passado algum tempo, percebe-
mos que só falávamos de política e
do momento do Brasil. E então eu
pensei numa curadoria que conse-
guisse abranger essa inÇuência, mas
não queria uma ilustração, um car-
toon político, apesar de duas peças
— uma da cara de Bolsonaro e a
outra com João Doria, governador
de São Paulo”, aÆrma ele sobre duas
peças de Thiago Nevs que se podem
ver agora na Underdogs.
Na transformação do espaço
expositivo na galeria inspirou-se
num acontecimento real. “Tinha


Nesse itinerário observamos
peças de Coxas, que tem a rua como
suporte, extraindo daí formas, cores
e pequenas construções, esculturas
e objectos. Vemos também formas
gráÆcas que representam fragmen-
tos irónicos da cidade por Kaur ou
desenhos e pinturas de Sosek, com
inÇuência da arte nipónica, em par-
ticular da sua componente caligrá-
Æca, o shodö. Por último, numa linha
mais conceptual, existem as escul-
turas e os suportes trabalhados e
recriados por Thiago Nevs, como
uma instalação vídeo criada a partir
de uma porta de carruagem de com-
boio. Para além da consciência [email protected]

essa imagem forte, durante o
impeachment da Dilma, em que o
planalto central de Brasília foi divi-
dido por uma grade de zinco com
quilómetros, com gente da esquer-
da de um lado e da direita do outro.
E aí pensei dividir a galeria com
esse material e criar uma espécie
de percurso.”

social e política expressada, une os
quatro artistas o facto de a sua prá-
tica actual ter origem na produção
de rua, ou, se quisermos, na desor-
dem que caracteriza a cidade gigan-
te de São Paulo.

Romper com limites
A balbúrdia, a que o título da expo-
sição alude, não tem apenas a ver
com a realidade socioeconómica do
Brasil. É também um olhar intrínse-
co sobre o universo da arte contem-
porânea, que cria hierarquias arti-
Æciais a partir das mais diversas
nomenclaturas. “Quando falei deste
projecto a alguns amigos, eles me

disseram que eu era artista e que
estava indo para uma galeria de arte
urbana e tal. Também me interessa
quebrar com isso. Tal como, no
outro extremo, não acredito em
fazer graêti sobre tela. Interessa-
me, isso sim, desorganizar essas
catalogações e falar do que essas
pessoas são capazes de fazer, rom-
pendo com eventuais limites.”
Na actividade de todos existe uma
forte preocupação política. Até que
ponto a situação actual veio inten-
siÆcar esse desejo de reÇectir e
intervir? “É uma altura muito estra-
nha”, reÇecte Marcelo. “O artista no
Brasil passou a ser visto como uma
ameaça à ideia de nação. Investir
em cultura é agora visto como não
fazendo sentido de todo. É apenas
um gasto. Um luxo da esquerda.
Existe a construção de um pensa-
mento onde a cultura Æca reequa-
cionada como sendo uma ameaça e
estamos sofrendo censura, princi-
palmente entre a comunidade
LGBTQ+. Virámos ameaça mesmo.
E isso tem feito com que os artistas
reposicionem os seus próprios tra-
balhos, repensando a sociedade e o
que é isso, aÆnal, de ser político.”

Lutar pela liberdade
E depois da desarrumação será pos-
sível entrever alguma clareza? Mar-
celo ri-se. “Espero que sim. É para-
doxal, porque por um lado os pro-
blemas que estamos enfrentando
são os mesmos de sempre do Brasil,
só que julgávamos que eles estavam
esquecidos. A lição a extrair daqui é
que a liberdade nunca está estabili-
zada. É preciso lutar todos os dias
para ela se manter.” Nesta altura, o
país está dividido, diz, embora subli-
nhando que “há uma coisa boa no
meio disto tudo: o povo brasileiro
está falando de política. Está a ser
obrigado a isso. Durante muitos
anos idealizámos o país e isso fez-
-nos esquecer que existe um pós-co-
lonialismo, uma pós-escravatura,
um pós-regime ditatorial, e tantas
outras matérias, da sexualidade à
educação, da dualidade entre priva-
tização e o que é público, que nunca
foram pensadas mesmo. Então, ago-
ra, é como se tudo isso nos estivesse
a ser devolvido de uma só vez. É um
choque muito grande. Temos de
pensar nisso tudo. Mas o Brasil tal-
vez precisasse desse abanão.”

Investir em cultura é agora


visto como não fazendo
sentido de todo. É apenas um

gasto. Um luxo da esquerda


Marcelo Cidade
Artista
Free download pdf