Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

50 • Público • Sexta-feira, 13 de Setembro de 2019


Jogos com História


Jogos com História
é uma rubrica publicada
de 15 em 15 em dias

A mais bela derrota do “Kaiser”


DR

Beckenbauer agarrado ao peito
durante o jogo com a Itália,
no Mundial 1970, em que jogou
com a clavícula fora do lugar
durante quase uma hora

Dia 17 de Junho de 1970. Sob um calor
sufocante e com mais de 100.000
pessoas nas bancadas do Estádio
Azteca, na Cidade do México, a Itália
e a Alemanha entram em campo pelas
16h locais, para disputarem uma das
meias-finais do Campeonato do Mun-
do. Antes do jogo, os prognósticos
eram reservados: frente a frente esta-
vam duas selecções europeias, das
mais estáveis e previsíveis que o mun-
do conhecia. No fim, contaram-se
sete golos, cinco dos quais no prolon-
gamento, e a Itália venceu por 4-3.
Chamaram-lhe o “jogo do século” e a
sua imagem icónica é a de um jogador
da equipa derrotada a jogar com um
braço imobilizado. A magia do futebol
voltava a fazer das suas.
Antes do dirigente suspeito de cor-
rupção no processo de atribuição do
Mundial 2006 havia um jogador
genial, que se tornou depois num trei-
nador de sucesso. Franz Beckenbauer
é a epítome da elegância no futebol
jogado. Depois dele já houve Baresi,
Sócrates, Platini ou Van Basten, só
para lembrar alguns, mas o número
5 da selecção alemã mantém-se como
o expoente máximo de classe e lide-
rança tranquila dentro das quatro
linhas. A sua autoridade natural e a
nobreza do seu desempenho expli-
cam a alcunha: “Kaiser”.
Aos 24 anos, e já com um Mundial
na bagagem, Beckenbauer dera um
passo atrás no terreno, para que as
suas equipas dessem um passo ainda
maior em frente na qualidade de jogo.
De médio, e daqueles com golo — no
Mundial de 1966, em Inglaterra, mar-
cou quatro —, passou a defesa. Mas
não era um defesa qualquer. Anulava
os adversários com inteligência, ins-
tinto táctico e capacidade de anteci-
pação. Pura classe. Diz-se que para os
génios o jogo é sempre muito lento;
eles sabem o que se vai passar e agem
e pensam com maior velocidade. Daí
a estarem sempre onde é preciso,
como se tivessem dons de adivinha-
ção, é simples. Para eles.
Beckenbauer era, portanto, um
excelente guardião da sua área. Mas,
jogando solto atrás da linha defensiva,


senta a eternidade. Mas a Alemanha
está ferida de morte.
Aos 67’, um slalom de Beckenbauer
levou o perigo até ao interior da área
italiana, mas Cera, uma espécie de
réplica do alemão (também podia ser
médio ou líbero), mas mais em força,
travou o “Kaiser” com uma entrada
dura. O árbitro mexicano Arturo
Yamasaki ignorou os pedidos de
penálti e o jogo prosseguiu.
Beckenbauer ficou combalido, agar-
rado a um ombro, e só se perceberá
mais tarde o quanto este lance influiu
no seu rendimento — e, possivelmen-
te, no desfecho da partida.
O Mundial de 1970 foi o primeiro
em que se puderam fazer substitui-
ções, mas, miseravelmente, o selec-
cionador alemão esgotara as suas
duas alterações um minuto antes de
o capitão da “Mannschaft” se lesionar.

Quando chega o prolongamento, ele
reentra em campo com o braço direi-
to imobilizado. Tinha a clavícula fora
do sítio e foi assim que jogou durante
quase uma hora! As dores eram
cruéis, mas nada na sua expressão o
revelou até ao apito final do árbitro.
Foi essa a imagem que se colou a
Beckenbauer. Injusta, porque ligada
a uma derrota. Mas reveladora do seu
carácter e do seu talento.
Nessa tarde escaldante de Junho,
Franz Beckenbauer abandonou o Está-
dio Azteca sem glória, mas a história
não estava ainda contada. Faltavam
quatro anos para a sua página mais
brilhante. Quando voltasse a sair de um
Mundial, seria com a Taça na mão.

Franz Beckenbauer completou esta semana 74 anos e ganhou tudo o que havia para ganhar. Mas a sua


imagem mais icónica talvez esteja ligada a uma derrota, quando acabou o “jogo do século” de braço ao peito


Futebol internacional


Luís Francisco


na, e seguiu-se o que estava “escrito”
no guião das ideias feitas: italianos a
defender, alemães procurando o golo.
Tardou, mas chegou, provando que,
até esse momento, nenhum dos luga-
res-comuns ficava sem expressão no
relvado do Azteca. Os alemães nunca
desistem e empataram já depois dos
90’, por Schnellinger. Seguiu-se o
prolongamento. E então o futebol
driblou os estereótipos.
Müller (94’) adiantou os germâni-
cos, Burgnich fez o 2-2 (98’) para os
transalpinos. A seguir, Riva, o outro
pé esquerdo da linha da frente da
“squadra azurra”, assinou o 3-2 (104’),
antes de se ver Müller meter a cabeça
para o 3-3 (110’). Já ninguém pensa, só
há emoções em campo. Um minuto
depois, aos 111’, Rivera consegue o 4-3
para a Itália. Ainda há nove minutos
para jogar e, a este ritmo, isso repre-

DESPORTO


tanto dobrava os seus colegas quando
eram ultrapassados como saía ime-
diatamente a jogar. Transformava o
momento defensivo em ameaça ofen-
siva com um simples toque, um passe
profundo ou uma iniciativa com a
bola nos pés. Na prática, funcionava
como um “5” e um “8”, com a genia-
lidade de um “10”. Jogar com ele era
jogar sempre em superioridade
numérica. E, mesmo assim, não che-
gou para a Alemanha ganhar à Itália
nessa tarde, no México.
A Itália adiantou-se logo no início
da partida, pelo avançado Boninseg-
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