Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
2 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019

4


Amazing Grace
A história “mais
louca do showbiz”
contada por Alan
18 Elliott

Antígona
Mónica Garnel
encena peça que
lhe traz
16 lembranças

Bernardo Sassetti
O primeiro de nove
álbuns inéditos a
lançar durante os
14 próximos anos

Entrevista
Devendra Babhart
tem um magnífico
novo álbum e até
12 fala em português

Exposições
O regresso
de Sarah Aźonso

FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS FOTO DA CAPA ARQ


A


s análises do presente momento
político-partidário, em Portugal,
convergem geralmente no diagnóstico de
que há uma crise ou até mesmo uma
decomposição da Direita. É uma situação
estranha porque a crise é uma tradição da
Esquerda, inscrita aliás nas suas elaborações teóricas
sob a forma de uma afinidade semântica —
etimologicamente certificada — entre “crise” e
“crítica”.
Quando as noções de “Esquerda” e “Direita”
desenhavam, com traços bem marcados, a paisagem
política e proporcionavam uma visão totalizante, a
Esquerda reivindicava legitimamente um lugar
crítico (e, portanto, de crise), enquanto a Direita
estava do lado das fundações mais perenes, voltada
para uma cultura do enraizamento. Mas a Direita,
entretanto, tornou-se “affairiste”, como dizem os
franceses, isto é, integrou na sua doutrina o
pragmatismo económico e o individualismo liberal,
de maneira que ficou muito mais vulnerável às crises.
Esta recente crise da Direita, em Portugal, assim
identificada pelos analistas, mostra uma situação
muito mais complexa que não se deixa sintetizar na
palavra “crise”; e mostra que é preciso politizar essa
complexidade. Os nossos afectos políticos
contemporâneos são marcados por tensões que já
não são representáveis pelos partidos e pelos
movimentos políticos que não tiveram a capacidade
de interpretar a cartografia da paisagem política
actual, de perceber que a polaridade única
Esquerda-Direita recobre hoje uma multiplicidade de
polaridades subjacentes que introduzem clivagens e
nos fazem entrar em discussão no interior da nossa
família política, mesmo a mais próxima. Falar da
crise da Direita é continuar a conjugar a política no
singular e insistir num confronto entre “governo” e
“oposição” que já não é prioritário, como foi outrora.
Mesmo um jornal como o Observador, que é talvez o
lugar onde podemos observar com nitidez uma
reconstrução ideológica da Direita, há tensões e
polaridades visíveis, que têm que ver sobretudo com
códigos e afinidades culturais e com políticas dos
costumes. E um partido como o CDS (viu-se bem no
episódio das “casas de banho”) dissolve-se

completamente nas suas contradições, ao querer
rasurar as tensões internas que dilaceram o Partido:
dele vêm simultaneamente as posições mais
reaccionárias (no que diz respeito, por exemplo, a
uma moral sexual e às questões do género) e os sinais
envergonhados de que nada disso é a regra da vida
interna e que até alguns dos seus dirigentes se
envergonham com as declarações públicas de outros
dirigentes e militantes. Querendo rasurar as tensões
e silenciar novas polaridades, os partidos
afundam-se, ficam prisioneiros das palavras de
sempre, que lhes moldaram o discurso desde a
fundação. Enquanto o mundo tende para a
crioulização, os partidos insistem em querer
preservar uma “pureza” de fachada, como se
permanecessem imunes a novas “correntes”, novas
polaridades políticas, que implicam necessariamente
um novo vocabulário que já não é o da política
tradicional. Um vocabulário que não seja o da
frustração e do rancor e que nos ajude a conceber de
maneira diferente os problemas sempre diferentes
de cada época. Crescimento, urgência das reformas,
alívio fiscal, etc., etc.: tudo isto não é mais do que o
consabido objecto de explorações demagógicas.
Todas estas palavras que nos colonizaram, já só soam
aos nossos ouvidos como estribilhos que ora nos
fazem rir, ora nos suscitam a vontade de gritar:
“Desaparece, deixa-me em paz!”.
Aquilo que os analistas hoje diagnosticam como
uma crise da Direita não é senão a emergência de
novas polaridades com as quais a Direita não está a
conseguir lidar. O mesmo aconteceu, e continua a
acontecer, à Esquerda, mas esta, como sabemos, já
se pluralizou há muito tempo e tornou-se
consubstancial à própria ideia de crise.
Uma cartografia actual das novas polaridades, das
correntes e contra-correntes, mostrará que elas
passam no interior dos partidos, que tentam
anulá-las em vez de se adequarem a uma política das
tensões. Agora, que as palavras “género” e
“transgénero” designam uma das tensões vivas,
talvez os partidos, que sempre foram instituições
com um modelo homossexual clássico (não há nada
mais clássico do que a homossexualidade) devessem
tornar-se antes “transgénero”.

H


á 211 anos é permitido publicar,
Dvender e ler livros, revistas e
jornais no Brasil. Há 34 anos, desde
que terminou a ditadura militar
(1964-85), a lei brasileira proíbe a
censura a qualquer tipo de
manifestação cultural, inclusive livros. E
nesta sexta-feira, 13 de Setembro, vai fazer
três meses que a homofobia é considerada
pelo Supremo Tribunal Federal um crime
análogo ao de racismo.
Cada uma dessas medidas foi um passo
essencial rumo a uma sociedade
democrática, mas veio tarde demais, e esse
atraso todo ajuda a explicar muito do que
ocorreu nos últimos dias, quando
governantes das duas regiões mais
populosas do país decidiram praticar actos
demagógicos de censura a livros destinados
a jovens leitores.
No caso de maior repercussão, o prefeito
Marcello Crivella aproveitou a visibilidade da
Bienal do Livro do Rio de Janeiro para dar
um golpe de marketing, tendo como
pretexto histórias em quadrinhos que
mostram um beijo entre dois personagens
masculinos, cena que o prefeito classificou
como “pornografia”. Mesmo sob uma
comovente reacção do mercado editorial, o
prefeito marcou posição, enviou fiscais à
Bienal, entrou na Justiça para garantir o
direito de apreender livros e no domingo foi
até a feira de livros em pessoa, tendo sido
estrondosamente vaiado pelo público.
Na mesma semana, o governador de São
Paulo João Doria mandou recolher das
escolas livros didácticos que traziam textos
educativos sobre questões de género,
privando os estudantes da rede pública, que
acabam de retornar às aulas, de material
didáctico de 8 diferentes disciplinas.
Os livros passaram a incomodar no
Brasil? Seria uma boa notícia, mas neste
caso não é bem isso. O que está em jogo
obviamente passa longe de uma verdadeira
preocupação literária ou educacional. Os
factóides têm mais a ver com marketing
político e com acontecimentos recentes da
vida brasileira, em especial a reacção das
igrejas à recente decisão anti-homofobia e a
disputa pela capitalização dos votos
conservadores, decisivos nas eleições.
A criminalização da homofobia, em Junho,
foi uma dura (e rara) derrota para os
pastores evangélicos que vêm dominando
cada vez mais a vida pública no país. Numa
acomodação tipicamente brasileira, desde
1989, quando o racismo passou a ser
enquadrado como crime pela legislação, a
criminalização da homofobia foi sendo

Crónica


Os livros passar


Paulo Werneck


A classe média é um objecto-fetiche dos sociólogos,
muito embora fiquemos sempre com a impressão
de que nenhuma ciência consegue definir com rigor
esse objecto. Ao excesso de presença sociológica
da classe média, corresponde a sua falta de
representação política. O que sabemos bem é que
ninguém que pertencer à classe média: aquilo a que
todos os pobres aspiram é serem ricos sem terem

de passar pelo grau intermédio, por um limbo
desclassificado e desinteressante onde se situa a
classe média. Esta, por sua vez, enquanto classe
tardia, guarda ainda consigo a memória antiga da
pobreza. Talvez por isso, um dos seus passatempos
favoritos seja visitar os pobres na televisão, que é
uma espécie de parque temático de pobres, para
diversão e ilustração das classes medianas.

Acção Paralela


A crise da Direita


António Guerreiro


Livro de recitações


“A classe média empobreceu e perdeu ‘o efeito amortecedor’ face a futuras crises”
Título de uma entrevista ao sociólogo João Teixeira Lopes, in PÚBLICO, 8/9/2019
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