Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 3

Nanni Moretti
Conversa com
um cineasta
incapaz de ser
22 “imparcial”

A ARQUIVO ANSA, AUTOR DESCONHECIDO, SEM DATA E-MAIL [email protected]


“Que outros se vangloriem das páginas que
escreveram; / a mim, orgulham-me as que li.” São os
dois primeiros versos de “Um Leitor”, poema que
Borges recolheu em Elogio da Sombra, título que tem
a doçura de me trazer à memória outro autor amado:
Tanizaki. Quando este Verão chegar ao fim, já poderei
orgulhar-me de ter lido Petersburgo – com calma e
prazer, coisas que raramente andam juntas, e que só
alcanço quando desobrigado de escrever sobre o
que leio, como na infância e na adolescência. Foi
Nabokov quem há muitos anos me havia
recomendado as páginas de Andrei Béli e desde
2010 (quando a Relógio D’Água publicou uma
tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra) que eu sentia
uma secreta vergonha íntima e culposa por adiar
sucessivamente a leitura do romance. Há outros livros


  • e vejo daqui as lombadas de alguns, enquanto
    escrevo – que acotovelam a minha má consciência,
    mas, avaliando pelo prazer imenso da leitura do russo,
    a minha vida de leitor pode reservar-me ainda muitas
    alegrias.


Entretenho-me por vezes a imaginar o que
aconteceria se as televisões concedessem ao campo
literário e artístico apenas uma percentagem ínfima
do tempo de antena que consagram à indústria do
futebol. O que aconteceria se houvesse “directos”
com encenadores e maestros, actores e músicos, que
fizessem a “antevisão” dos respectivos espectáculos?
E se acrescentassem umas “flash interviews” no final?
E se fizessem também uns “apontamentos de
reportagem” junto de espectadores e ouvintes, antes
(durante) e depois? E rematassem tudo com “painéis
de comentadores”? Com surpresa, tropeço em
analogia idêntica num livro sobre Bach, quando o seu
autor, o maestro inglês John Eliot Gardiner, compara
certas estratégias dos músicos germânicos dos
séculos XVII e XVIII visando melhores condições de
trabalho e melhores remunerações às dos agentes
desportivos actuais. O livro intitula-se Music in The
Castle of Heaven – A Portrait of Johann Sebastian Bach
e, mais do que uma biografia, é um extenso e
estimulante ensaio de interpretação da música do
compositor, em particular da sua obra sacra. Foi
publicado em 2013.

O ano de 2013 foi o da fundação da Orquestra XXI,
cujo director artístico e musical, Dinis Sousa, se
tornou entretanto maestro assistente de Gardiner no
Monteverdi Choir, nos English Baroque Soloists e na
Orchestre Révolutionnaire et Romantique. A
Orquestra XXI é formada exclusivamente por jovens e
excelentes instrumentistas portugueses que estudam
e/ou trabalham no estrangeiro. Para o oboísta Samuel

Por Mário Santos

O que me passa pela cabeça


ípsilon | Sexta-feira

.PT


e/ou trabalham no estrangeiro. Para o oboísta Samuel

Por Mário Santos

deixada de lado governo após governo,
numa aceitação tácita das práticas
discriminatórias de igrejas neopentecostais
que vendiam (e ainda vendem) a lucrativa e
desumana “cura gay”.
O período coincide com uma enorme
expansão do poder neopentecostal. A Igreja
Universal do Reino de Deus, da qual Crivella
é um dos principais líderes, tornou-se a
proprietária do Grupo Record, que detém a
segunda posição no disputado mercado de
TV aberta no Brasil. Na cidade de São Paulo,
segundo levantamento do jornal Folha de S.
Paulo cem novas igrejas abriram as portas
por ano no último quarto de século: 2.433
templos. Os pastores passaram a dominar o
Congresso, derrubaram o governo Dilma
Rousseff em 2016 e em 2018 fizeram um
presidente. Pleiteiam agora um ministro no
Supremo Tribunal Federal.
É verdade que todos os presidentes
anteriores fizeram alianças
político-partidárias com a bancada
evangélica, mas nenhum deles vocaliza os
interesses do grupo como Jair Bolsonaro,
católico, mas casado com uma evangélica
neopentecostal. Quando o STF equiparou a
homofobia ao crime de racismo, em Junho, o
presidente da República afirmou que a corte
“se equivocou” na decisão, que segundo ele
vai dificultar a obtenção de emprego por
homossexuais.
A decisão, que prevê pena de prisão e
multa de até 50 mil reais, desencadeou uma
reacção nas Assembleias Legislativas
estaduais e câmaras de vereadores, que se
apressaram em aprovar medidas que
garantissem juridicamente o que esses
religiosos chamam de “liberdade religiosa”,
ou seja, ter licença oficial para discriminar os
homossexuais.
Por isso, a investida de Crivella contra os
livros é um golpe de efeito duplo: busca
defender os interesses da igreja que lidera e
reivindicar para si a “causa” da homofobia,
já que, na política brasileira de hoje, quanto
mais obscurantista, melhor. O moralismo é
um activo político que está em disputa por
Doria, Crivella, Bolsonaro e muitos outros.
Já o cálculo de Doria é um arranhão no
verniz moderno que ele adoptou para se
promover, almejando se sentar na cadeira
hoje ocupada por Bolsonaro. Nas polémicas
presidenciais como a crise ambiental no
Brasil e os confrontos com líderes
estrangeiros, Doria vem tentando se
posicionar de maneira menos extremista
para capitalizar votos conservadores que já
não toleram o estilo agressivo do
presidente. Mas, ao mandar recolher livros

aram a incomodar no Brasil?


ESTELA SILVA/LUSA

Bastos, prematuramente falecido
em Maio passado, a Orquestra
XXI era uma outra “selecção
nacional”. No passado
Domingo, assisti ao
magnífico espectáculo
musical dado pela
Orquestra XXI no CCB, em
Lisboa. Onde estavam as
televisões?

que discutem temas de género, o
apresentador de TV convertido em
governador mostra que o seu
autoproclamado liberalismo só vai até à
página dois.
Vale tudo pelo voto neopentecostal,
inclusive sacrificar os direitos dos
homossexuais. Ficou demonstrado nas
eleições de 2018 que compensa surfar no
moralismo difuso que torna o ar irrespirável
no Brasil de hoje, inclusive dentro de uma
feira de livros. Fernando Haddad, o
candidato do PT e de Lula derrotado por
Bolsonaro, foi estigmatizado por causa de
um “kit gay” – cartilha de educação sexual –
distribuída pelo Ministério da Educação,
então comandado por ele. Nas eleições do
ano passado, atribui-se a Haddad a criação
de uma tal “mamadeira de piroca” – que
teria um pénis de borracha no lugar do bico,
“para combater a homofobia”, segundo o
vídeo grosseiro e criminoso que se espalhou
via WhatsApp e que se tornou o símbolo das
fake news que selaram as eleições
presidenciais no Brasil.
Enquanto a “causa homofóbica” é motivo
de disputa política, outros crimes continuam
a acontecer fora das páginas dos quadrinhos,
o que estabelece um nexo, se não de causa e
efeito, de permissividade oficial, entre a
criminosa e homofóbica censura promovida
por Crivella e Doria e a violência dos crimes
que acontecem nas ruas.
No mesmo fim-de-semana em que Crivella
fez seu teatro na Bienal, o actor Marcello
Santanna, de 23 anos, foi agredido a socos
em São Paulo, pelo motorista do ônibus em
que viajava, após dar selinhos (beijinhos nos
lábios) em seu companheiro. Saiu com o
nariz quebrado. A investigação foi instaurada
para o crime de lesão corporal, não de
homofobia. Até ao final desta segunda-feira,
o motorista não havia sido preso, tendo
apenas prestado depoimento.

Director da revista
literária brasileira
Quatro Cinco Um
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