Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

6 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019


“B


ela parceira, bela par-
ceira!...”, diz Rita Al-
mada a rir-se para a
filha Zoé, que acaba
de trocar a raquete
de badminton pelo
descanso numa cadeira, deixando a
irmã mais nova a jogar contra uma
parceira imaginária. Mas na Quinta
da Lameirinha, situada em Bicesse,
a vida imita a arte e aquilo que esta-
mos a ver não é exactamente o que
parece. Zouzou, diminutivo de Zoé,
está a fazer de José de Almada Ne-
greiros e reproduz uma das inúmeras
fotografias que ainda se guardam na
quinta que o casal de artistas Sarah
Affonso/Almada Negreiros comprou
em 1938 perto do Estoril e que ainda
está nas mãos da família. “Zouzou
viu a fotografia de Almada num jogo
de badminton e gostou. Ele está sen-
tado em cima de um escadote com a
sua boina a fazer de júri.”
As netas Rita e Catarina Almada,
uma dupla de arquitectas de Lisboa,
e as duas bisnetas, Zoé e Anouk, são
as únicas descendentes do mais céle-
bre casal de artistas modernistas por-
tugueses. Não há nenhum homem
nas gerações mais recentes da família,
mas a atenção de Zoé não deixou de
se concentrar na figura masculina do
casal, tal como a história de arte na-
cional tem feito até muito recente-

mente. Talvez depois de 2019, ano em
que se celebra o 120.º aniversário do
nascimento da artista com duas ex-
posições em dois dos principais mu-
seus portugueses — Sarah Affonso, os
Dias das Pequenas Coisas, que abre ao
público hoje no Museu Nacional de
Arte Contemporânea do Chiado, e
Sarah Affonso e a Arte Popular do Mi-
nho, que inaugurou em Julho no Mu-
seu Gulbenkian, ambas em Lisboa —,
esta artista que nasceu a 13 de Maio
de 1899, no encerramento do século
XIX, passe a ser vista de uma maneira
diferente. Afinal, 2019 é “o Ano de
Sarah Affonso”, como ouvimos du-
rante a montagem do Chiado a um
dos funcionários do museu.
Em Bicesse, a vida também é inspi-
rada pela arte, porque uma das teses
da exposição do Chiado concentrada
na sua biografia é que Sarah Affonso
não deixou de ser artista quando ar-
rumou os pincéis em 1939 e o seu
projecto plástico continuou nas pe-
quenas coisas do quotidiano, sem
distinção entre artes maiores e meno-
res, entre pintura e bordado, entre
cerâmica e desenho de jardim, numa
diversificação que também era reivin-
dicada pelas vanguardas modernas.
Sarah Affonso tinha 40 anos
quando desiste de pintar regular-
mente e estava casada há cinco anos,
numa carreira que já tinha tido alguns

interregnos. “Nos primeiros anos de
casados fomos para Moledo nos dias
de Agosto. Sempre detestei o mês de
Agosto e sempre me trouxe azar”,
conta nas suas memórias. Nesse ano,
tinha conseguido arranjar uma cozi-
nheira para fazer as refeições e uma
criada para tomar conta do filho pe-
queno. “Tinha telas, tinha tempo e
férias...”, continua, mas um tele-
grama de Lisboa, por causa do traba-
lho de Almada, obrigou a família a
voltar. “Fiz as malas, guardei as telas,
chorei todo o dia e o José percebeu
que eu nunca mais ia pintar...”
Estamos sentadas na mesma mesa
da quinta em que Sarah Affonso con-
tou este episódio à nora mais de 40
anos depois, numa longa conversa
gravada ao longo de dois anos e pu-
blicada em 1982, um ano antes da
artista morrer.
“— Mas porque é que desistiu?!
— Não era feliz, se não desistisse.
— E o que é que o Mestre Almada
disse?
— A mim nunca me disse nada. Mas
eu sei que ele dizia: ‘A Sarah tem-se
prejudicado por causa de mim.’”
Nestas memórias publicadas em
1982, um ano antes de Sarah Affonso
morrer, a artista diz também que uma
das razões para ter desistido de pintar
foi nunca ter tido um espaço de tra-
balho só para si na casa da Rua S. Fi-

Rita e Catarina
Almada na
sala da quinta
de Bicesse,
onde se vê um
retrato de
Sarah Affonso
feito pelo
marido

Alpendre
da casa da
Quinta da
Lameirinha,
em Bicesse,
em que se vê
uma janela a
enquadrar a
natureza,
numa lição
que parece vir
da pintura


FOTOGRAFIAS DE RUI GAUDÊNCIO
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