Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 7

lipe Neri, em Lisboa, onde o casal
com dois filhos viveu toda a vida por
cima da Galeria Diferença. Em Bi-
cesse, já cada um tinha o seu atelier —
o da Sarah mais perto da casa, o de
Almada instalado no meio do pinhal
—, as netas lembram também que a
artista só vivia aqui durante o Verão.
Quando entramos na sala principal
desta casa que foi crescendo de uma
forma orgânica, Catarina abre as por-
tadas da janela que estão por cima de
uma bela arca em madeira com ferra-
gens em metal amarelo marcada com
as iniciais “F.M. Affonso”, o pai da
artista que com as economias de três
anos feitas numa campanha militar
em África conseguiu enviar Sarah em
1924 para estudar em Paris, num
gesto raro para a época.
As netas contam que Francisco
Marcelino Affonso, o minhoto da fa-
mília, era um homem culto, com uma
biblioteca grande, mostrando como
alguns interesses de Sarah já existiam
na família. “A Sarah era uma pintora
de carreira profissional, admirada
pelos seus pares. Era um artista dos
pés à cabeça. Ela começa por ter uma
carreira de pintora clássica. Fez a Es-
cola de Belas-Artes. Foi para Paris por
duas vezes. Esteve na Académie de la
Grande Chaumière, trabalhou para se
sustentar [num atelier de costura]”,
explica Rita.


Com a doença e a morte da mãe em
1930, a condição de irmã mais velha
obrigam-na a assumir várias respon-
sabilidades. “A Sarah com outro feitio
não tinha voltado de Paris para tratar
dos irmãos”, afirma Catarina, lem-
brando que numa carta à escritora
Fernanda de Castro, grande amiga e
mulher de António Ferro, o ideólogo
do Estado Novo, ela pede para confir-
mar se a mãe está muito doente.
“Ela diz nas conversas com a minha
mãe que numa casa não cabem dois
pintores”, comenta a neta mais velha.
Mas há várias cartas de Almada à mu-
lher a incentivá-la a não abandonar a
pintura, acrescenta Catarina: “Essas
cartas descobertas agora no espólio
dizem como ele a admira imenso
como pintora. Nunca nada é tão
branco e preto. As cartas mostram
como eles falam entre pares.”
Ela lamentou nas memórias nunca
ter tido encomendas públicas e que
isso a desencorajou. “Ela na sua con-
dição de mulher não tem encomen-
das. Era uma artista dentro do seu
meio, mas depois não tinha encomen-
das”, comenta Rita. Quando desiste
de pintar, a ditadura do Estado Novo
já existe há uma década, num meio
em que não havia mercado de arte,
verdadeiras galerias ou marchands.
Estas duas arquitectas em meio de
carreira, que dividem um atelier em

Lisboa, dizem que há questões que
ainda hoje perduram na invisibilidade
das carreiras das mulheres, quando
lhes pedimos para reflectir sobre o
percurso da avó à luz de 2019, tempos
mais reivindicativos em que a desi-
gualdade de géneros é encarada
como uma questão que tem atraves-
sado gerações. “Este é um momento
de maior atenção à carreira de mu-
lheres artistas. Nós próprias passá-
mos a ser mais convidadas, porque
somos um atelier dirigido por duas
mulheres, mas há imensas arquitectas
portuguesas que não têm destaque.
É preciso notar que Sarah chega este
ano a duas instituições museológicas
quando duas mulheres as dirigem,
Penelope Curtis na Gulbenkian e Emí-
lia Ferreira no Chiado”, diz Rita Al-
mada.
No canto do alpendre, a mesa de
pedra onde Maria José de Almada
Negreiros gravou as memórias de Sa-
rah Affonso está agora tapada com
uma toalha para proteger o álbum
que as netas manuseiam com a eti-
queta ANSA-F-963. “O álbum tem um
número porque faz parte do espólio”,
explica Catarina. As iniciais identifi-
cam os dois membros do casal, por-
que o arquivo artístico e documental
é conjunto. As netas querem mostrar
é como a Quinta da Lameirinha era
um deserto, muito diferente daquilo
que podemos ver hoje. “Era um ter-
reno sem nada, com quatro ou cinco
pereiras. Tudo o que é árvore foi plan-
tado por ela”, mostra Catarina, recor-
dando que num documentário da
RTP produzido há 20 anos Sarah cha-
mava às árvores as suas filhas.
Sarah Affonso gostava de se sentar
neste lugar estratégico que é o alpen-
dre. Entre árvores e arbustos, vemos
daqui olaias, cedros, agaves, hibiscos,
loendros, costelas-de-adão, alguns já
só entrevistos através de uma janela
desenhada na parede do próprio, que
tem a função de proteger do vento
mas também de enquadrar a natu-
reza, num ponto de vista que Sarah
Affonso parece ter pedido empres-
tado à pintura de Matisse, defende
Aurora Carapinha, especialista em
história da arquitectura paisagista, no
livro publicado pela Tinta-da-China
que une as duas exposições. É dela a
seguinte descrição do jardim informal

da Quinta da Lameirinha, uma peça
que mostra a modernidade do dese-
nho de Sarah: “É no alpendre, que
resguarda a porta de entrada da casa,
onde melhor se sente esta forma de
entender o jardim. Aí, num jogo de
dentro e fora, o jardim visita-nos: sons
longínquos envolvem-nos; a luz, que
a janela que se abre a poente deixa
entrar, ilumina-nos; o aroma do pi-
nhal e o perfume das laranjeiras, dos
nardos e roseiras, que as brisas da
encosta transportam, intrometem-se
nas conversas do dia-a-dia; a água,
que corre da bica, refresca-nos.” Não
longe, havemos de encontram o “ro-
seiral da amizade”, “a rua nova do
Almada” (um trocadilho com uma
artéria conhecida do Chiado) ou “a
mata japonesa”.
A casa e a quinta, que podemos
entender como uma obra total, estão
cheias de coisas que aos poucos vão
ganhando (ou hão-de ganhar) etique-
tas ANSA e desaparecendo deste es-
paço doméstico. Na sala em que en-
tramos directamente a partir do al-
pendre, vê-se sobre a lareira um
retrato da artista feito pelo marido,
que há-de ser transportado para a
exposição no Chiado, mas também
se pode apreciar na Gulbenkian parte
da colecção de artesanato que Sarah
gostava de representar na pintura.
“Esta casa foi construída por eles. Por
isso, no fundo, é tudo uma obra. Em-
bora exista muito a presença do Al-
mada, mesmo obras dele, todo este
ordenamento da quinta é muito Sarah
Affonso. Há também toda a parte de
bordados, almofadas, cortinas, tape-
tes, toalhas de mesa, tudo o que são
tecidos passou pelas mãos dela”,
continua Rita.
Algumas obras estão integradas na
arquitectura, como os três painéis de
azulejos do alpendre, dois feitos por
Sarah Affonso e outro por Almada. Há
obras que o casal fez em conjunto,
como a decoração do complexo sis-
tema de rega da quinta, entre poços,
tanques e moinhos de vento. O alpen-
dre ganhou alguma ordem clássica
nas obras já feitas pelo filho do casal,
também ele arquitecto.
A quinta Bicesse é o único espaço
que o casal habitou que ainda está na
posse da família, uma vez que a casa
de Lisboa, onde o casal vivia com

“É preciso notar


que Sarah chega


este ano a duas


instituições


museológicas


quando duas


mulheres as dirigem,


Penelope Curtis na


Gulbenkian e Emília


Ferreira no Chiado”,


diz Rita Almada


A casa foi
crescendo de
uma forma
orgânica,
tendo recebido
melhoramen
-tos realizados
pelo filho
do casal

e
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