Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

10 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019


O programa de António Ferro
— marido da grande amiga a quem
escreve entusiasmada do Minho —,
que recomendava que os artistas mo-
dernos fossem beber ao popular para
fazerem obras verdadeiramente mo-
dernas, só aparece publicado no dis-
curso inaugural do Museu de Arte
Popular, em 1948, quando o ideólogo
do Estado Novo já tinha perdido o
apoio de vários artistas, lembra a cu-
radora, que avança com várias per-
guntas, na conversa com o Ípsilon,
para as quais ainda não tem respostas
definitivas: “Em que medida a pin-
tura de Sarah dos anos 1936-39 estaria
de acordo com o programa de Ferro
de um modernismo inspirado no po-
pular? Em que medida ela se afasta
dessa ideia? E brinca com ela? O con-
formismo aparente com uma pintura
‘português suave’ tê-la-ia incomo-
dado? Que consciência teria do que
estava a fazer?”. Por último, talvez a
interrogação mais significativa: “Por-
que é que nunca ninguém lhe pergun-
tou nada disto?”
Sarah Affonso, defende a curadora
num texto intitulado Minho no Cora-
ção. O Sentido Antigo das Coisas –
Uma Pintura Sem Folclore, que assina
com o antropólogo António Medei-
ros, não parece ter estado muito in-
teressada em engrossar as fileiras de
uma arte moderna nacionalista, se-
gundo as linhas directivas de Ferro.
“Nestes quadros sobre as festas, a
procissão, a família, o trabalho, so-
bre o espírito de um povo, ela cria
uma relação com o país, com um
sentimento de ser português, mas
penso que não há um folclorismo
estado-novista. Esse folclore, aliás,
está ainda a ser construído nos anos
30, com o rancho de Carreço, o pri-
meiro do país, a surgir em 1937, como

como o bordado atravessa a obra,
integrando-a como artista no impor-
tante movimento moderno de recu-
peração dessa arte. Poucos bordados
da artista sobreviveram, mas é Sarah
Affonso quem diz que foi a partir dos
bordados que chegou à fase mais co-
nhecida da sua pintura marcada pelos
motivos inspirados no Minho.

Pintura “erudita e sábia”
As suas últimas pinturas mostram
uma voluntária sintetização, que na
altura é entendida com dificuldade.
Como justifica o escultor Diogo de
Macedo, que enquanto director do
Museu do Chiado comprou obras a
Sarah Affonso, a pintura da artista
não é inculta: “Posso asseverar que
essa pintura de aparentes ingenuida-
des é erudita e é sábia.” Macedo, seu
amigo de Paris, diz que se construiu
com estudo, muita observação e vi-
sitas a museus, tendo origem no seu
“laboratório de sonhos”.
A curadora da exposição da Gul-
benkian nota que Sarah pára de pintar
num ponto importante da sua car-
reira. “É uma pintura que comunica,
interessante, se a soubermos ler.”
Numa fase em que explorava “a
síntese da forma”, nas palavras de
Maria de Aires Silveira, curadora da
exposição do Museu do Chiado jun-
tamente com Emília Ferreira, Sarah
chega a Moledo cheia de material
para pintar e acaba por perceber,
como noutras vezes na sua vida, que
não vai ter tempo para desenvolver
esse novo eixo de trabalho. “Já não
era uma pintura naïf, cheia de ‘inge-
nuismos’, mas formas mais ousadas,
com aqueles braços tubulares e um
certo estatismo da figura. Há uma
intensidade cromática de verdes pro-
fundos em contraste com laranjas. É
uma pintura mais expressionista.
Tudo isto já é uma modernidade mais
avançada que ela não vai conseguir
explorar. Percebe que teve avanços e
recuos na sua carreira, causados por
questões familiares, e assume que
não pode dedicar-se exclusivamente
e profissionalmente à pintura.”
Se ela desistiu da pintura, não de-
sistiu de outas formas de expressão,
levando a sua criatividade para um
contexto mais doméstico. “O dese-
nho, que é estrutural em Sarah

Sarah Affonso e
e Almada
Negreiros
no Chiado,
1934, no ano
em que se
casaram


Affonso e a acompanha toda a sua
vida, surge no bordado, como surge
na cerâmica, mas também no pró-
prio jardim. Esse desenho que está
em todo o lado redime o abandono
da pintura. Ela cria uma derivação
mais pragmática para aplicar a sua
criatividade”, explica Emília Fer-
reira, durante a montagem da expo-
sição do Chiado, museu de que é
directora.
Numa parede do museu com retra-
tos que vão de 1927 até 1930, Maria de
Aires Silveira vê um dos eixos princi-
pais do início da sua produção — os
retratos de meninas —, em que há um
encontro do tema com a expressão
plástica. “Ela aproveita-se do tema,
retratos de crianças em que não há
rugas de expressão, para desenvolver
um modernismo equilibrado de li-
nhas simplificadas e cores reduzidas.
Mostra o interesse do modernismo
pelo mundo da criança, que podemos
também ligar às pinturas de 1937, das
meninas e dos bois, em que além da
simplificação da linha já há a tal sín-
tese da forma.”
O interesse de Sarah Affonso pelo
mundo infantil ou pela representação
feminina não tem sido valorizado
como uma procura do novo, a grande
questão de todos os modernismos,
defende Emília Ferreira. “Os críticos
menorizam na obra dela esse inte-
resse pelas crianças e pelas questões
de género. Enquanto nas obras dos
artistas homens esse interesse é visto
como uma abordagem plástica inten-
cional, no caso dela é visto como uma
abordagem psicológica, sem um pro-
grama plástico por trás mas antes um
programa emotivo. Argumentam que
Sarah só se interessava por essas
questões porque era mãe. Já
quando as mulheres artistas não têm
filhos, como é caso de Ofélia Marques
ou de Mily Possoz, dizem que o inte-
resse vem do grande desgosto de não
serem mães.”
A quinta de Bicesse, a que são de-
dicadas várias salas na exposição do
Chiado, também ainda não tinha sido
vista como uma obra plástica de Sa-
rah Affonso. Emília Ferreira não tem
dúvidas sobre esta nova visão de Bi-
cesse: “É a continuação lógica da di-
versificação artística que as vanguar-
das valorizavam.”

mostramos na exposição.”
Sarah Affonso, lembra a curadora,
não tem encomendas do regime, ao
contrário de Almada. “O vernáculo é
para ela uma referência artística e
uma experiência de vida. Ela conhe-
cia as ideias de Ferro, mas eu não diria
que pinta em conformidade com as
ideias dele.”
Espantosa, como classifica a cura-
dora, é a pintura desta época mas que
não está datada onde meninas e bois
aparecem suspensos num fundo
verde. “É uma dança matisseana
numa composição que parece planar.
Tem peso e, no entanto, também há
movimento. E quem se lembraria
nestes anos de juntar meninas e bois
de raça barrosã?”
Igualmente singular na pintura
portuguesa, e mesmo na europeia da
época, é a pintura Carrossel, feita em
1936, que foi exposta com outras
obras na II Bienal do Museu de Arte
Moderna de São Paulo. Ana Vascon-
celos vê nela “uma quase abstracta
pintura figurativa”, com um carrossel
de cavalinhos em movimento que é
representado sem ocupantes. Os
mesmos cavalos surgem nos botões
de cerâmica que fará para vender e
sustentar a casa já na década de 40,
pois coma morte em 1943 do ministro
das Obras Públicas, Duarte Pa-
checo, Almada fica quase cinco anos
sem novas encomendas.
Este trânsito de elementos entre os
vários universos plásticos de Sarah
Affonso também está expresso em
pinturas como A Família, onde uma
cortina bordada suspensa enquadra
o primeiro plano da pintura cosido
através de pinceladas saturadas de
tinta branca. Em 1953, Sarah Affonso
dá uma entrevista intitulada Com li-
nhas também se pinta..., lembrando

O interesse de Sarah


Affonso pelo mundo


infantil ou pela


representação


feminina não tem


sido valorizado como


uma procura do


novo, a grande


questão de todos os


modernismos,


diz Emília Ferreira

Free download pdf