Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 15

ouvir Sassetti pela primeira vez


O registo destes


temas em piano solo


facilmente daria


origem a um álbum


e as escolhas de


algumas takes


sinalizavam já os


caminhos que


Sassetti pretenderia


tomar com aquele


material


celo e Jean-François Lezé no vibra-
fone), a que chamou Ascent. Quase
sem pausa para recuperar o fôlego,
Sassetti avançaria no ano seguinte
com a ambiciosa e desconcertante
produção de Unreal — Sidewalk Car-
toon, música composta para o
Drumming que acompanhava um li-
vro visual escrito pelo músico e que
funcionava como delirante e desa-
brida viagem a um lugar mais ou me-
nos imaginário.
Daí que o material deste Solo, ape-
sar das belíssimas peças que aqui
encontramos pela primeira vez, não
primasse exactamente pela urgên-
cia. A urgência, na verdade, fora to-
car naquele piano e registar o mo-
mento — algo que voltaria a aconte-
cer numa outra ocasião na Pala do
Pavilhão de Portugal, situação em
que Sassetti gravou seis horas quase
ininterruptas ao piano e que deverá
chegar a disco (depois de devida-
mente peneiradas e seleccionadas)
mais para a frente neste ciclo de ál-
buns inéditos. Percebe-se também
que se seguisse uma fase de repouso
depois da gravação: Sassetti publi-
cara no ano anterior um soberbo
álbum duplo de piano solo, Indigo /
Livre, maravilhosamente coeso, e em
que passava da melancolia pura ao
júbilo, do humor que retirava de
Thelonious Monk à elegância cir-
cunspecta de Federico Mompou; e
Alice estava ao virar da esquina.
Solo escuta-se agora, na verdade,
como uma respiração. Mais próximo
das abordagens de Indigo do que do
espaçamento das notas para se enfiar
dentro das imagens que caracterizava
Alice, começa por um Realejo que é
típico daquilo que Sassetti explorava
solitariamente naquele período: um
registo obsessivo, em que o motivo
melódico vai pingando sobre o te-
clado e, aos poucos, faz-se rodear por
notas que bailam à sua volta, sempre
indecisas entre a luz e a sombra. Passa
depois pela suprema delicadeza de
After the rain, tema de John Coltrane,
tocado numa pessoalíssima e sensível
desaceleração do mundo — percebe-
se o lugar, percebe-se o momento —
ou por duas belas e tocantes versões
de temas (um deles mesclado com
uma autoria de Wenceslau Pinto) que
o pianista compôs para a banda so-
nora de Maria do Mar, filme mudo de
Leitão de Barros.
A voz do próprio Sassetti, antes de
o disco se finar, dizendo “Rapazes,
não vos massacro mais, está feito;
temos disco”, parece não deixar gran-
des dúvidas de que estas sessões de-
veriam ter conhecido uma vida seme-
lhante a esta que agora escutamos.
Nelson Carvalho está também seguro

de que o músico ficara satisfeito com
as gravações. “Na verdade”, reflecte,
“nunca o vi descontente. Conheço
muitos músicos que nunca ficam con-
tentes com aquilo que gravam. O Ber-
nardo não era um deles. Não é que se
levasse extremamente a sério — não
levava —, mas em geral gostava muito
do que fazia.”

Música erudita
Se parte da missão mais imediata da
Casa Bernardo Sassetti passa por
disponibilizar, ao ritmo possível, a
música que o pianista deixou gra-
vada e que possa fazer sentido parti-
lhar com o público, a sua razão de
ser mais lata prende-se com a divul-
gação permanente da sua obra, quer
através da publicação de songbooks
que permitam reavivar as suas peças
em qualquer ponto do mundo, quer
através do desafio lançado anual-
mente a outros músicos para que
criem concertos (e eventuais discos)
a partir do riquíssimo reportório de
Sassetti. Em 2018, Inês Laginha re-
solveu abrir o leque de convidados,
fugindo às presenças mais óbvias de
pianistas, ao convidar o quarteto li-
derado pelo saxofonista Ricardo
Toscano.
A 28 de Setembro, no Centro Cul-
tural de Belém, será a vez do guitar-
rista Bruno Pernadas emprestar a
sua singular identidade musical (que
voga entre o jazz, a pop, o lounge, o
rock e tantas outras referências) aos
temas de Sassetti. Sabendo que a es-
colha teria de recair sobre “alguém
que tivesse estudado jazz mas tam-
bém viajado numa direcção dife-
rente”, Inês lançou a rede e pescou
o imediato interesse de Pernadas. O
guitarrista cruzou-se com a música
de Sassetti precisamente na escola
do Hot Clube. “E fiquei apaixonado
pelas músicas de Nocturno e de In-
digo”, lembra ao Ípsilon. “Mais tarde,
tive oportunidade de o ver muitas
vezes ao vivo e no Hot Clube ficava
sempre muito perto do piano para o
ver tocar. Sempre o considerei um
dos melhores músicos do mundo.”
Para o concerto de homenagem,
Pernadas impôs-se como premissa
inicial evitar o piano e propõe-se rein-
ventar um amplo reportório, que vai
de Mundos e Salsetti a Unreal — Si-
dewalk Cartoon, a partir de uma ins-
trumentação composta por quarteto
de cordas, vibrafone, harpa, guitarra,
contrabaixo, bateria e vários instru-
mentos de sopro. Com a liberdade de
quem diz: “Vou fazer o que me ape-
tecer e que estiver a sentir, mas res-
peitando a música, claro. Longe de
mim pôr uma batida tecno por cima
de uma música do Sassetti.”

O processo de preparação do con-
certo acabou por revelar a Bruno
Pernadas, após uma “dissecação ri-
gorosa”, o quanto é “difícil incluir
novas cores na música”. “No caso da
música dele, só o facto de não se tocar
os acordes e as notas pela ordem que
ele tocou, com as inversões que ele
tocou, já não soa bem. É música eru-
dita, mesmo as partes de jazz. Foi
interessante descobrir isso.” No caso
do pianista galego, a investigação que
levou até à gravação do álbum The
Wake of an Artist — A Tribute to Ber-
nardo Sassetti revelou-lhe sobretudo
o quanto o seu homenageado se foi,
cada vez mais, aproximando “ao má-
ximo da essência — transmitir muita
música com o mínimo de notas, com
o mínimo de sons”.
Também no caso de Alberto Conde
foi um gesto de homenagem a levá-lo
a gravar para a Clean Feed. Conde e
Sassetti conheceram-se em Coimbra,
em 2004, durante o festival Jazz ao
Centro, tendo o galego convidado
Bernardo a apresentar-se no ano se-
guinte em Pontevedra, no festival
Imaginaxons. “Partilhámos momen-
tos musicais, havia uma admiração
mútua”, diz ao Ípsilon. “Não contac-
támos mais, mas obviamente segui a
sua trajectória artística — escutava os
discos dele com frequência.” Até que
em conversa com o crítico português
Rui Eduardo Paes surgiu a ideia, em
2016 (quatro anos volvidos sobre a
morte de Sassetti, em Maio de 2012)
de abordar o seu reportório e o entu-
siasmo levou Conde a convidar Carlos
Barretto e Alexandre Frazão para se
lhe juntarem em concertos e num
álbum que descreve uma viagem par-
ticular: “A primeira metade do disco
é uma visão do Bernardo a partir de
fora, é como uma dedicatória, com
autores que ele apreciava [Mompou,
o tema Monksetti da autoria de Conde,
em que funde os universos de Monk
e Sassetti], até chegar aos temas do
Bernardo, introduzindo-me o mais
que pude na sua forma de tocar ou de
interpretar as suas composições.”
Para o contrabaixista Carlos Bar-
retto, essa foi também uma oportu-
nidade para voltar ao período de 17
anos em que, no trio de Sassetti, aju-
dou na “criação dos reportórios que
foram executados um pouco por
todo o mundo”. “Para mim existe
sempre um misto de sentimentos
quando toco a música do Bernardo:
por um lado, a nostalgia e a profunda
tristeza por não mais poder desfrutar
da sua companhia; por outro, a feli-
cidade de ver a sua música a ser par-
tilhada por outros talentosos músicos
e o Frazão e eu estarmos lá também
a contribuir.”

Vontade
de resistência
Para Alexandra Ávila Trindade e João
Godinho, directores artísticos da Big
Band Júnior (BBJ), é também esse
desejo de partilha com novas gera-
ções que está por detrás do álbum
Big Band Júnior Abraça Sassetti, lan-
çado igualmente este ano. “Há uma
vontade de resistência, de manter a
música do Bernardo viva na memó-
ria e de dá-la a conhecer a gerações
mais novas”, dizem acerca da grava-
ção em que Claus Nymark dirige um
reportório em grande parte consa-
grado a Sassetti.
Para Alexandra, Bernardo Sassetti
está ligado ao início do seu fascínio
pelo jazz, quando o viu tocar pela
primeira vez, em 1999, na mesma
cidade (Ponta Delgada) para onde o
pianista se dirigiu na altura de gravar
Solo. Foi o seu primeiro contacto
com “uma música extremamente
lírica, muito melódica, de uma
grande poesia” que levaria os dois a
convidarem Sassetti para que se tor-
nasse o primeiro profissional a jun-
tar-se aos jovens músicos, pouco
depois da sua fundação em 2010 —
por razões de agenda, Sassetti não
pôde aceitar. “Mais tarde”, acres-
centa João, “houve um momento em
que sentimos a necessidade de fugir
um bocadinho ao reportório stan-
dard de big band e de jazz.” E foi
nessa altura que passaram a incluir
no seu reportório um arranjo de Mali
m’bule baaba [tema de Sassetti gra-
vado no álbum Passagem, de Carlos
Martins], estreado no concerto de
final de ano de 2012.
Agora, pensaram em expandir essa
ideia e fazer da música de Sassetti a
âncora para uma nova gravação, de
novo com o objectivo de familiarizar
estes músicos com idades compreen-
didas entre os 12 e os 19 anos com o
universo do pianista. Foi isso que fi-
zeram, num reportório que tanto
integra Pescaria (a única peça para
big band que Sassetti compôs) como
a canção Dias consecutivos (resultante
de uma parceria entre Sassetti e Sér-
gio Godinho). E também assim nos
lembram o quanto a música de Ber-
nardo Sassetti continua à espera de
ser revelada sob as mais diversas for-
mas. Tal como quando João Godinho,
ao volante de um carro que parti-
lhava com o irmão, fez uma viagem
a escutar repetidamente um CD que
não fora escolha sua. Já a estudar
composição, espantou-se por não
reconhecer aquela música “genial” e
ignorar o seu autor. Quando parou e
foi ver, era Unreal — Sidewalk Car-
toon, de Sassetti. Afinal, tinha estado
sempre ali.

A Big Band Júnior e em baixo
Alberto Conde com o trio
de Bernardo Sassetti

THOMAS MANCINI

ESTELLE VALENTE - TEATRO SÃO LUIZ
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