Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
16 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019

Espectáculo


de abertura da


temporada do


Teatro Nacional


D. Maria II,


a tragédia


encenada por


Mónica Garnel


estará em cena


de amanhã a 6


de Outubro.


Uma queda livre


nos desmandos


do poder


e na luta de


uma mulher


por justiça


e dignidade.


Nas mãos


de Mónica


Garnel,


Antígona


é uma


vertigem


Gonçalo


Frota
N

ão é especialmente original
ou singular que um novo lí-
der tente impor de imediato
a sua lei, afirmando o seu
poder e tornando claro que
quem lhe fizer frente não
terá um destino radioso. Ainda es-
corre o sangue e ainda se faz a con-
tagem dos corpos tombados sem
vida na sequência do combate que
opôs mortalmente dois irmãos na
luta pelo reino de Tebas, ainda o cho-
que de descobrir familiares sem um
fio de respiração se abate sobre a
população, e já Creonte ascende ao
trono e faz saber que só permitirá
prestar honras fúnebres a um dos
seus sobrinhos mortos em combate:
Etéocles deverá ser sepultado com
toda a justiça e “terá a honra devida
aos mortos”; Polinices, vindo de Ar-
gos, não poderá ser enterrado ou
sequer chorado. “E agora, sem tú-
mulo ou lamentos”, desespera Antí-
gona, irmã de ambos e de Ismena,
todos filhos de Édipo, “[Polinices]
será um repasto bem-vindo para as
aves de rapina.”
Tudo começa por aqui. A tragédia
de Antígona, escrita por Sófocles 442
anos a.C., tem início com a ascensão
de Creonte ao trono e com esta lei
ditada a quente, ainda os mortos não
acabaram de morrer. E assim segui-
mos Antígona, revoltada com a pre-
potência autoritária do seu tio e,
desde o primeiro momento, determi-
nada em rebelar-se contra a lei e a

velar Polinices — colocando a digni-
dade humana acima de qualquer
vaipe despótico.
Se Antígona é uma peça enredada
numa tragédia familiar que alastra a
todo o reino, também o texto de Só-
focles está profundamente inscrito na
história familiar de Mónica Garnel,
encenadora desta versão que abre a
temporada do Teatro Nacional D. Ma-
ria II, em Lisboa, em cena de amanhã
a 6 de Outubro. Neta de Mariana Rey
Monteiro, Mónica aventura-se pela
primeira vez no reportório das tragé-
dias gregas com a mesma peça que
marcou a estreia da sua avó enquanto
actriz no Teatro Nacional. “A minha
bisavó [Amélia Rey Colaço] escolheu
a Antígona para a sua filha se estrear
e então este é um texto e um nome
que desde pequena está presente na
minha vida”, diz a encenadora. “Há
muitas imagens, muitas fotografias,
muitas lembranças [na família]. Cres-
cemos todos com fotografias da Antí-
gona.”
Tiago Rodrigues, director do D.
Maria II, ignorava por completo esta
ligação quando propôs a Mónica Gar-
nel levar à cena este específico texto.
A actriz e encenadora (aqui apenas
na segunda condição) hesitou ainda
em aceitar. Apesar de sempre ter sen-
tido um óbvio desejo de se lançar a
este reportório, a única experiência
de Garnel com as tragédias gregas
clássicas havia sido com a Oresteia de
Eurípedes, ainda no tempo do Con-

servatório. Enquanto não resolvia a
indecisão —até porque de 27 de Se-
tembro a 13 de Outubro reporá tam-
bém a sua Swimming Pool Party no
São Luiz — e com algum medo em
aceitar uma proposta tão ambiciosa,
pôs-se a reler a peça e viu-se invadida
por aquele sentimento raro “quando
se abre um livro e não se consegue
parar”, enquanto os batimentos car-
díacos aceleram e roubam qualquer
hipótese de sossego. “Foi um mo-
mento assombroso de adrenalina e
de vontade de pegar no texto.”
Até aqui, apesar de ter dirigido tex-
tos de Ricardo Neves-Neves ou Miguel
Castro Caldas, as encenações de Mó-
nica Garnel partiram sempre das suas
inquietações ou dos desafios artísticos
que queria colocar-se, encomen-
dando depois textos que, por mais
que se revelassem surpreendentes,
tinham nela o rastilho inicial. Com
Antígona, o processo foi inverso: ao
invés de começar pelas suas inquieta-
ções, teve de descobri-las num texto
com 2460 anos de pó em cima, penei-
rando e iluminando as palavras de
Sófocles até nelas encontrar a possi-
bilidade de agir politicamente e de
reflectir sobre os mais humanos im-
pulsos ligados ao exercício do poder.
Nesse gesto, frisa a assistente de
encenação Inês Vaz (tal como Garnel,
com um percurso de actriz muito li-
gado às criações de Mónica Calle),
aquilo que vinga não é “um movi-
mento arqueológico de ir buscar algo

“A minha bisavó


[Amélia Rey Colaço]


escolheu a Antígona


para a sua filha se


estrear e então este


é um texto e um


nome que desde


pequena está


presente


na minha vida”,


diz a encenadora.


“Há muitas imagens,


muitas fotografias,


muitas lembranças ”

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