Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 17

que está encerrado no tempo”. “O
movimento é o de tornar este texto
uma coisa presente e viva.” E nem é
preciso escarafunchar muito.
Creonte, tal como o rei-Sol Luís XIV
depois de si e tantos outros exemplos
de líderes políticos actuais, confunde-
se com o Estado e ilude-se na crença
de que a sua vontade será necessaria-
mente a vontade da população.
Tanto assim que, ao ser confron-
tado por Hémon, seu filho, com as
vozes populares que não apoiam a
sua condenação à morte de Antígona
(depois de a rapariga violar a sua lei e
velar o seu defunto irmão), Creonte
reage perguntando se “a cidade é que
me vai dizer o que devo ordenar?”. E
continua a lançar perguntas cuspidas
com um fel de quem se sente traído
pelo povo, o mesmo povo que jura
querer proteger das ameaças exterio-
res: “Mas, afinal, a quem cabe gover-
nar esta terra? Não é a mim? Então o
Estado não é de quem manda?”


Uma cidade doente


A primeira imagem que ocorreu a
Mónica Garnel, depois de se apaixo-
nar por Antígona a ponto de a enco-
menda inicial se ter transformado na
sua própria vontade, foi a de pássa-
ros que tomavam o palco. Estava ao
volante quando, de súbito, a cabeça
se lhe encheu de pássaros que ima-
ginava a sobrevoarem o palco do
Teatro Nacional (não é exactamente
o que acontecerá, descansem os


mais impressionáveis), sugeridos
pelas palavras do sábio Tirésias ( João
Grosso), quando procura Creonte
(Manuel Coelho) assustado com o
voo de aves que “gritavam com fúria
agoirenta e sons bárbaros”, antes de
perceber que se matavam umas às
outras. É uma imagem portentosa e
ameaçadora que, diz Mónica Garnel,
revela como “a decisão de Creonte
leva a que os pássaros enlouqueçam
e que morram envenenados, augu-
rando uma praga” que se instala em
Tebas. Tirésias acusa inclusivamente
as decisões de Creonte de estarem
na origem de tudo e tornarem a “ci-
dade doente”, uma vez que aves e
cães comeram os despojos mortais
do filho de Édipo.
Mónica tenta que esta doença que
alastra pela cidade lance Antígona
numa vertigem em que as decisões de
Creonte — a recusa de um funeral a
Polinices e a sentença de morte de
Antígona —, por mais que se revelem
erradas aos olhos do próprio rei, o
vão consumindo enquanto se tenta
convencer de que “é a obediência que
salva a vida dos homens rectos” e que
as “boas decisões” nunca devem ser
abandonadas “por causa de uma mu-
lher”. Creonte insiste (enquanto
pode) porque admitir os seus erros
será confessar-se falhado, será dar
parte de fraco perante os seus súbdi-
tos. Mas para a encenadora, o rei é
apenas a figura mais óbvia e central
de uma galeria de personagens toma-

FILIPE FERREIRA

das por conflitos devastadores, todas
implicadas num dilema que não lhes
oferece qualquer fuga, dentro de uma
cidade asfixiada, aprisionadas por
tudo quanto está a acontecer.
Essa vertigem procurada pela en-
cenadora atira o público para o palco,
implica-o na história, como se fizesse
parte do coro, da assembleia a que
Creonte se dirige no seu esforço de
convencimento e de manipulação
colectivos, tudo isto na imediata res-
saca de uma batalha e no meio de
uma cidade em alvoroço. Um alvo-
roço que é definido pelas várias dico-
tomias e choque entre forças contrá-
rias que Mónica Garnel escolheu ex-
plorar em Antígona: homem vs.
sociedade, homem vs. mulher, deu-
ses vs. poder na terra, justiça vs. in-
justiça, juventude vs. poder estabele-
cido. Antígona (interpretada, alterna-
damente, por Carolina Passos-Sousa,
Diana Lara e Joana Pialgata, todas
estagiárias da Escola Superior de Tea-
tro e Cinema) é, em boa parte, o corpo
que carrega muitas destas lutas, con-
trariando um rei que entende que não
pode ser vergado por uma mulher;
Antígona é a mulher que questiona
com um fulgor próprio da adolescên-
cia as decisões que a Creonte lhe pa-
recem incontestáveis.
É a sugestão desse vendaval de
energia adolescente que nos aparece
sugerido logo nos primeiros momen-
tos, quando ouvimos escutar uma
versão (por Sofia Vitória) de Smells
like teen spirit que é menos o disparo
cáustico, elegíaco e desesperançado
dos Nirvana do que uma dança des-
maiada e espectral. Ao assistir aos
vídeos dos Nirvana, sob o filtro de
Antígona, Mónica Garnel acabou por
reconhecer neles a energia excessiva
de Baco, “a asfixia de onde sai o
grunge”, um berro que se fez grito
colectivo, contra nada em concreto;
mas seguramente um ímpeto de mu-
dança que bolçava o tédio teenager
de dias demasiado longos e dema-
siado vazios.
Há também um grito colectivo em
Antígona, uma peça marcada pela
“incapacidade de escuta”. É um grito
assumido pelo coro em passo de
marcha. Mas esse é bem mais nítido:
Ifigénia, Marielle, Lucrécia, Marta,
Olga, Pingyang, Malala, Catarina são
nomes de mulheres que “tiveram
uma sorte parecida à de Antígona”.
Julgadas por serem mulheres, julga-
das por terem “transgredido, ousado
e lutado”, por terem levantado a voz
quer em público quer anonima-
mente, dentro das suas casas. São
nomes que Mónica recolheu em vá-
rios continentes, debitados em tom
cada vez mais revoltoso e dizendo-
nos o quão insuportável é esta se-
quência de mulheres esmagadas por
várias formas de poder.
Talvez por isso, tombados todos
os corpos, escorridas todas as gotas
de sangue, Mónica Garnel queira
deixar que a luz final se demore so-
bre uma mulher deixada na sombra
de Antígona. Como se nos dissesse
que dali há-de vir a luz. De alguém
que sobreviveu e tem memória do
que se passou.

Antígona
(interpretada,
alternadamente,
por Carolina
Passos-Sousa,
Diana Lara e
Joana Pialgata,
todas
estagiárias da
Escola Superior
de Teatro e
Cinema) é, em
boa parte,
o corpo que
carrega
muitas lutas,
contrariando um
rei que entende
que não pode
ser vergado
por uma mulher
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