Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 19

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T


alvez porque este filme to-
mou conta da sua vida du-
rante perto de 30 anos, o
realizador e produtor Alan
Elliott acha que esta é a his-
tória mais louca do showbiz.
Tinha oito anos quando ouviu um
disco transformador, um álbum em
que Aretha Franklin, já estrela con-
sagrada, regressava à música da sua
infância — o gospel. Amazing Grace
(1972) é um registo essencial. Mas é
também um álbum imensamente
popular que escondeu um filme.
Guardado num cofre durante 4o
anos, esse filme é uma prova do fa-
lhanço de um grande realizador,
Sydney Pollack, é uma história de
segredos e meias-verdades e é um
pesadelo técnico e legal. Amazing
Grace é também um documentário
transcendente, agora que finalmente
está terminado, e que se estreia esta
semana nos cinemas portugueses.
Aretha Franklin chora discreta-
mente, as lágrimas misturadas com o
suor. O público de crentes e fãs abana-
se atordoado. Mick Jagger dança entre
eles, uma mulher entra em transe. O
reverendo James Cleveland, a mais
conhecida figura do gospel naqueles
anos 1970, chora, incrédulo, de ca-
beça nas mãos. A certa altura, lança
o seu lenço na direcção de Franklin,
sentada por momentos ao piano. Ser-
via-lhe para limpar o suor que cobre
toda a gente, toda a gente na igreja,
mas isso não importa. Franklin estava
quase a terminar a interpretação de
Never grow old, a primeira canção que
alguma vez gravou. As notas e a en-
trega atingidas pela rainha da soul e
de qualquer outro espírito que con-
jurou naquela igreja baptista de Los
Angeles fazem-no atirar a toalha ao
chão. O realizador Sydney Pollack
sorri, de pé no meio da igreja.
É uma amostra do que se pode es-
perar de Amazing Grace, o filme cujo

Ela, Aretha Franklin,


quase nunca abre os


olhos durante as


duas noites de


Janeiro de 1972 que


passa no púlpito ou


ao piano na New


Temple Baptist


Mission de Los


Angeles. É uma


versão bastante


diferente da estrela


fulgurante a que o


público se habituou


material base foi recolhido pelo rea-
lizador de África Minha e que perma-
neceu escondido num cofre em Los
Angeles até que Alan Elliott, que cres-
ceu e trabalhou no meio musical de
Los Angeles, decidiu hipotecar a casa
e ressuscitar o filme perdido de
Aretha Franklin.
Ela, Aretha Franklin, quase nunca
abre os olhos durante as duas noites
de Janeiro de 1972 que passa no púl-
pito ou ao piano na New Temple Bap-
tist Mission de Los Angeles. É uma
versão bastante diferente da estrela
fulgurante a que o público se habi-
tuou. Aqui é uma intérprete contida,
focada no seu estado de beatitude.
Mas mesmo de olhos fechados, “este
é um olhar directamente para os
olhos, para a alma de Aretha Franklin,
algo que nunca ninguém experien-
ciou”, garante Alan Elliott ao telefone
com o Ípsilon durante uma manhã
californiana.
É isso que acrescenta Amazing
Grace à personagem popular de
Aretha Franklin, responde o produ-
tor ao Ípsilon. Amazing Aretha. “Ela
é uma estrela tão grande, uma voz
tão grande e um receptáculo tão im-

portante e verdadeiro que não sei se
alguma vez conseguimos olhar direc-
tamente para a luz. Normalmente
vemo-la através de um reflexo, ou
lateralmente, seja em Respect ou ou-
tro dos seus êxitos”, reflecte. “É uma
imagem total de Aretha Franklin,
uma imagem que nunca vimos”,
composta pela companhia do pai, o
pastor C.L. Franklin, pela presença
do reverendo Cleveland, seu mestre-
de-cerimónias, ou da cantora gospel
Clara Ward, a sua mentora — a certa
altura, Ward levanta-se e caminha.
Franklin é uma força da natureza e
Ward não pode ficar sentada. “Esta
é a imagem completa.”

“O documento deÄnitivo
da música popular”
A história de Amazing Grace começa
em Janeiro de 1972 e em duas noites
de gospel na pequena igreja de Los
Angeles. Franklin, acompanhada
pela sua banda — o baterista Bernard
Purdie, o guitarrista Cornell Dupree,
o baixista Chuck Rainey, bem como
pelos produtores históricos Jerry
Wexler e Arif Mardin — iria gravar
aquele que se tornaria o disco de
gospel mais vendido da história e
também o seu álbum mais popular.
A sua editora, a Warner, contratou
também Sydney Pollack, acabado de
sair do êxito e dos prémios de Os ca-
valos também se abatem (1969), para
registar tudo. Quarenta e seis anos
depois, a partir de Abril deste ano, o
filme estreava-se mundialmente com
Alan Elliott como produtor e co-rea-
lizador.
Pollack morreu em 2008 e, como
Elliott vai repetindo ao longo da con-
versa, “era um homem muito orgu-
lhoso”. Nunca admitiu que não tinha
sequer uma primeira versão do filme,
que se esqueceu de usar claquetes
para garantir que som e imagem fica-
riam sincronizados, que nem sequer

O reverendo James Cleveland,
a mais conhecida figura do
gospel naqueles anos 1970,
a certa altura lança o seu lenço
na direcção de Franklin,
sentada por momentos ao piano

apontou o nome das canções.
Na primeira noite, a sala está cheia
e o serviço religioso culmina com a
histórica e transformadora interpre-
tação de Amazing Grace, uma versão
de 11 minutos de pura concentração
e abandono. O coro e seus coletes
prateados estão presos a cada dedi-
lhar da voz de Franklin, que não so-
çobra como nos ensaios que Elliott
nos deixa ver e onde chora ao cantar,
sobrecarregada pelo peso da história
recente — a luta pelos direitos civis, o
assassinato de Martin Luther King, a
cultura negra sempre asfixiada.
Na segunda noite, a sala trans-
borda de gente, como se tivesse cor-
rido a notícia do que ali se passara na
noite anterior. Até Jagger e Charlie
Watts fazem uma pausa nas grava-
ções de Exile on Main Street, dos
Rolling Stones, para ir ver Aretha
Franklin cantar uma mescla de espi-
rituais negros, hinos religiosos e can-
ções pop adaptadas ao contexto do
culto — You’ve got a friend, de Carole
King, ou Wholy holy, de Marvin Gaye,
misturam-se com Precious Lord, take
my hand, Mary don’t you weep ou Old
landmark.
“Acredito que o filme é o docu-
mento definitivo da música popular
e se eu não o tivesse feito, mais nin-
guém o teria feito”, diz Alan Elliott
sem falsas modéstias. Fala com a pro-
priedade de quem trabalhava na
Atlantic Records e tinha 25 anos
quando Jerry Wexler lhe falou da exis-
tência de umas bobines com as ima-
gens; de quem, aos 55 anos, final-
mente completou a tarefa de tornar

o filme uma realidade. “Em 1990,
soube que tinha de acontecer”, conta.
“Depois torna-se um centro, maluco,
da minha vida. Não há ninguém tão
louco quanto eu que hipotecasse a
casa para fazer este filme.”
As escolhas de Alan Elliott fazem
do filme o que ele é. Quando final-
mente começou as muitas conversas
com Pollack sobre o que viria a ser
Amazing Grace, teve de matar o pai.
“Quando exumámos o filme, por-
que foi quase o que fizemos, tirámo-lo
de um cofre onde estava trancado há
quase 40 anos”, conta Elliott pela
enésima vez desde que começou a
mostrar o filme em público, primeiro
a familiares e amigos, depois ten-
tando estreá-lo em festivais, enfren-
tando processos judiciais da própria
Aretha Franklin. Pollack queria entre-
cortar as imagens recolhidas na igreja,
que Elliott continuava sem ver, com
intervenções de Quincy Jones e que-
jandos para fazer esse tipo de docu-
mentário em que os peritos fazem a
pontuação da narrativa visual. Alan
Elliott disse “não”.
E fez algo diferente, um filme con-
certo, um “making of” de um “making
of” em que Pollack a cirandar pelas
alas da igreja ou os operadores de
câmara agachados fazem tanto parte
da história quanto as personagens
secundárias que são os coralistas ou
o maestro Alexander Hamilton.
“Ele sabia que tinha coisas fantás-
ticas, mas não sei se ele sabia o que
era o filme”, revela Elliott sobre
Pollack e o drama que rodeou o pro-
cesso em que tentava ajudá-lo a e
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