Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

20 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019


Aretha
Franklin chora
discretamente,
as lágrimas
misturadas
com o suor.
O público de
crentes e fãs
abana-se
atordoado.
Mick Jagger
dança entre
eles, uma
mulher entra
em transe


ressuscitar o documento. “Tive-
mos grandes conversas, teatrais, mas
ele não me mostrava o filme.” Alan
Elliot descobriria mais tarde que
aquilo de que falava tão apaixonada-
mente com Pollack “foi o maior erro
dele”.
Era o seu primeiro documentário
e Pollack “teve um dia mau”, diz hoje
Alan Elliott. “Quando digo que o filme
é um milagre, mas não é um acidente
é porque estas pessoas que deviam
ter uma claquete, que deviam estar
sentadas e deixar a película rolar para
manter o som síncrono e não estar
sempre a ligar e desligar as câmaras
[não o fizeram].” O resultado foi cerca
de 14 horas de filme em 2000 peda-
ços, sem som e com o registo da edi-
tora (também a Warner) a produzir à
mesma um dos mais celebrados ál-
buns de sempre (ainda assim, algu-
mas músicas foram gravadas de novo
por Franklin em estúdio). Chegaram
a contratar Alexander Hamilton para
ler lábios e tentar juntar tudo, mas
continuavam com músicas incomple-
tas e uma cassete VHS com mais de
duas horas de material inutilizável.
Tudo foi fechado num cofre, a editora
e o estúdio tornavam-se entidades
separadas, Pollack fechava-se em co-
pas. Amazing Grace correu sérios
riscos de nunca ser um filme.

O drama das laterais
Entretanto, as divergências entre
Pollack e Elliot fizeram com que se
afastassem até que, em 2008... “O
homem que celebrou o meu casa-
mento, Larry Gelbart, escreveu
Tootsie - Quando Ele Era Ela [reali-

zado por Pollack em 1982] e disse-me
que Sydney estava muito doente e
que tínhamos de falar. Telefonei-lhe
e disse-lhe ‘tenho tanta pena que
estejas tão doente’. E ele disse-me:
‘Alan, não estou doente. Estou a mor-
rer, foda-se.’ Disse-me: ‘Acho que
conheces este filme melhor do que
eu. Falei com a Warner Bros. e disse-
lhes para te deixarem acabá-lo’.
Nunca mais falámos e ele morreu
pouco depois.”
Foi aí que o produtor descobriu o
que estava no cofre e que começa-
ram as suas escolhas. Aplicou a Ama-
zing Grace a estrutura das comédias
musicais americanas, escolhendo
canções para marcar ritmos narrati-
vos, introduzindo brevemente cenas
de ensaios ou imagens justapostas.
“Depois disso, a realidade é que
aquela sala é pequena, muito pe-
quena e muito cheia. Podia tornar-se
claustrofóbica.” Embora acreditasse
que o filme estava dentro da sala e só
dentro da sala — “se psicanalisasse
isso... Cresci em Los Angeles, na-
quela altura com uma comunidade
muito parecida com aquela e sinto-
me em casa lá”, admite — tinha de ter
a garantia de que era um espaço con-
fortável para o espectador quase 50
anos depois.
Mostra Aretha, que diz poucas pa-
lavras aos fiéis e tudo coloca nas letras
e toadas, a sorrir, mais descontraída
nos ensaios do que quando veste os
seus caftans branco com brilhos ou
verde-claro e canta para uma missa.
“Temos planos muito longos para não
criarmos sombra com a montagem.”
Os fiéis misturam-se com as câmaras,

a iluminação e microfones. Tudo é
parte do cenário. “Actualmente tería-
mos os câmaras a usar preto, pare-
cem ninjas. Em 1972 têm barbas, es-
tão de laranja, de cetim, entram pelos
planos dentro, têm ‘Panavision’ es-
crito nas costas.”
Amazing Grace dá contexto à grava-
ção de um álbum e de interpretações
históricas, mas dá-lhe sobretudo reac-
ção. É o drama das linhas laterais, a
comoção do coro, o pai Franklin a
recordar que a filha, que já tinha 20
álbuns, cinco Grammys e 11 número
1 consecutivos nas tabelas de vendas,
“nunca saiu da igreja”. Uma mulher
regista a noite com o seu próprio pe-
queno gravador e encara a câmara.
Há uma sedução mútua. “Começa-
mos como outsiders, mas quando
aquela mulher se ri para nós somos
insiders, estamos dentro da sala e esta
é a nossa igreja. Para mim é o mo-
mento mágico em que o filme se torna
maior do que uma gravação. Estamos
aqui”, congratula-se Alan Elliott. No
mínimo pode dizer-se que este foi um
processo atribulado. As datas suce-
dem-se, da hipoteca em 2007 para
comprar o filme em bruto à Warner
até ao trabalho começado em 2008
rumo à tecnologia digital que em 2010
permitiu começar a sincronizar o
filme, que depois tentou estrear em


  1. Em 2015, tentou levá-lo ao Fes-
    tival de Telluride e encontrou, tal
    como em 2011, a oposição judicial de
    Franklin, que acreditava estar a ser
    explorada. “Sydney Pollack gerou o
    mito de que Aretha Franklin não tinha
    um contrato. Não era verdade, mas
    [isso] ocultou o facto de ele não ter os
    registos sincronizados”, alega
    Elliott.
    A verdade é que Franklin se opôs
    sempre à exibição do filme, exigindo
    milhões como Julia Roberts ou di-
    zendo que não tinham direito a usar
    a sua imagem. “Não é que não esteja
    feliz com o filme, porque adoro o
    filme em si”, disse Franklin ao Detroit
    Free Press em 2015, depois de ter visto


“Quando digo que o


filme é um milagre,


mas não é um


acidente é porque


estas pessoas que


deviam ter uma


claquete, que deviam


estar sentadas e


deixar a película rolar


para manter o som


síncrono e não estar


sempre a ligar e


desligar as câmaras


[não o fizeram].”


uma cópia do que Elliott já tinha
pronto. Mas invocou “problemas”
legais. Já estava doente, e tal como
Pollack sofria de cancro do pâncreas.
Morreu em Agosto de 2018 e a sobri-
nha e gestora do seu legado, Sabrina
Owens, autorizaria depois a estreia
do filme convicta de que Franklin o
aprovaria.
May Hall é uma das mulheres do
Comunitário da Califórnia do Sul que
acompanha Franklin em Amazing
Grace. Tinha 22 anos em 1972. “Ainda
é um dos melhores momentos da mi-
nha vida”, disse este ano ao New York
Times. “O sítio ficou eléctrico”, re-
corda por seu turno Alexander Ha-
milton no mesmo jornal, cujo crítico
Wesley Morris se questiona: “ver
Amazing Grace hoje é perguntarmo-
nos onde teria aterrado no panteão”
se se tivesse estreado em 1972, onde
teria levado Franklin no firmamento
de Hollywood, o que significaria para
o acto raro de filmar mulheres negras.
É que Aretha podia ter sido uma outra
estrela, e Alan Elliott, agora co-reali-
zador de Amazing Grace ao lado de
Pollack, não o esquece quando é
questionado pelo Ípsilon sobre os
obstáculos colocados por Franklin à
estreia do filme.
“Ela estava zangada desde que, em
1972, lhe disseram que ia ser uma es-
trela de cinema. Muda-se para Los
Angeles e logo depois disto Pollack faz
O Nosso Amor de Ontem, com Barbra
Streisand, e Diana Ross faz Destino de
Mulher, que lhe dá uma nomeação
para os Óscares. Aretha era uma pes-
soa muito competitiva que queria
estar a esse nível e nunca deve ter
perdoado essa injustiça.” A promessa
da Warner era que Amazing Grace
seria lançado a par de Super Fly, o
emblemático filme de blaxploitation,
mas foi vítima do estranho caso da
falta de claquete.
A resposta de Elliott a este tipo de
pergunta tem mudado um pouco ao
longo dos anos. É, como a sua própria
história pessoal com Amazing Grace,
“cumulativa”. Fala dos contratos, que
existiam e conseguiu encontrar, e de
como acredita que Franklin já estava
zangada quando ele entra em cena.
“No final, nos últimos oito anos, ela
tem cancro do pâncreas e a última
canção do filme é a primeira canção
que ela gravou na vida”, aos 12 anos
na igreja onde começou a cantar, a
New Bethel Baptist Church em Detroit
(onde em 2018 decorreria parte do
seu funeral). Aretha Franklin tinha 29
anos quando da sessão dupla de Ama-
zing Grace. “O pai, James Cleveland,
a sua banda, estão todos lá... Não sei
se ela queria passar os últimos anos
da sua vida a cismar na sua mortali-
dade vendo aquilo que penso ser o
ponto alto da sua carreira.”

e
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