Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 21

Amazing
Grace
De Sydney
Pollack e Alan
Elliott
Documentário

mmmmm


L


ouvada seja a Senhora, Santa
Aretha; louvados sejam
aqueles que acharam por
bem, todos estes anos
depois, insistirem
teimosamente em
desenterrar estas imagens
perdidas durante quase meio
século, partilharem com o mundo
a dádiva sagrada de Santa Aretha a
regressar a uma casa da qual
nunca realmente saiu. Porque
Amazing Grace é, nada menos do
que isso, um milagre: como se,
sem aviso nem expectativa,
surgissem dos confins do nada
imagens que se julgavam perdidas
ou desconhecidas de Amália a
cantar no Luso, Callas no Scala,
Piaf nos cabarés parisienses, Judy

nos estúdios da Metro, Sinatra em
Las Vegas. Uma voz, no pico da sua
forma, a cantar aquilo que dela fez
quem é — clássicos do gospel, da
música da igreja baptista negra na
qual Aretha Franklin (1942-2018),
filha de reverendo, se criou e a sua
voz se revelou. Aretha na igreja,
gravada ao vivo, num sermão
cantado onde a voz se faz palavra e
a palavra se faz fé e a fé se faz
música e ninguém, mas
absolutamente ninguém, sai
incólume.
Amazing Grace não era
inteiramente desconhecido: o
álbum homónimo, registado ao
vivo numa igreja de Los Angeles,
foi em 1972 uma sensação (ainda
hoje é o disco de gospel mais

Aretha cheia de graça


Depois de quase meio século fechadas num


arquivo, as imagens de Aretha Franklin a


cantar gospel numa igreja de Los Angeles


vêem Änalmente a luz do dia. O resultado é


um dos maiores Älmes-concerto de sempre.


Por Jorge Mourinha


vendido de sempre). É um dos
picos absolutos da música
americana, diríamos mesmo da
música do mundo, com uma
cantora de excepção a ser correia
de transmissão, mero conduto de
algo que a transcende. Mas uma
coisa é ouvir, outra é ver. E se o
disco era extraordinário, ver
Aretha no altar deste cinema
convertido em igreja é aceder a
outra dimensão: um corpo
atravessado pela fé, que coloca
cada ínfima célula ao serviço de
uma voz arrancada de dentro que
traduz uma alma colectiva, numa
catarse, quase exorcismo, de todo
o sofrimento e de toda a perda, e
que apenas deixa amor, entrega,
esperança, fé.

Mesmo para quem não professa
uma religião ou se diz ateu é
absolutamente impossível ficar
incólume à exposição nua e crua
de uma voz possuída pelo divino,
que Sydney Pollack (num intervalo
entre Os Cavalos Também se
Abatem e As Brancas Montanhas da
Morte) filmou como visitante
avassalado, apanhado tão de
surpresa como os espectadores.
Atento à reacção daqueles que
ouvem o testemunho professado
de Aretha, ao modo como ele
afecta o público, procurando, com
o improviso possível e fazendo das
fraquezas atabalhoadas forças,
reagir ao imprevisto de duas noites
possuídas pelo divino da voz de
Aretha tocada pela graça, por uma
fé que se faz suor e lágrimas e voz.
Por hora e meia, Aretha solta a
divindade que há em si e toca-nos
com ela. E nós agradecemos-lhe,
em lágrimas – e muitos há que
saem em lágrimas deste filme.
Precisámos de quase meio
século para vermos Aretha,
primeiro porque Pollack não
acautelou considerações técnicas e
a sincronização do som e das
imagens só com as novas
tecnologias se resolveu, depois
porque a própria Aretha (por
razões que só ela compreendia)
não queria que este filme fosse
visto. Louvados sejam aqueles que
insistiram, louvada seja Aretha.
Amazing Grace é um dos maiores
filmes-concerto de sempre.

Por hora e meia, Aretha solta
a divindade que há em si
e toca-nos com ela. E nós
agradecemos-lhe, em lágrimas


  • e muitos há que saem em
    lágrimas deste filme

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