Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

22 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019


Conversa com Nanni Moretti


que regressa com Santiago, Itália,


um documentário sobre o golpe


de estado chileno de 1973 e o apoio


que a Itália deu aos perseguidos


pelo regime de Pinochet.


“Nunca serei


imparcial


tendo os


torturadores


num lado


e as vítimas


noutro”


Luís Miguel Oliveira


E


m Santiago, Itália Nanni Mo-
retti olha para o golpe de es-
tado que depôs Allende e
impôs Pinochet, a partir do
papel de porto de abrigo que
a Itália, através da sua embai-
xada em Santiago, desempenhou
para muita gente que fugia da perse-
guição da junta militar. Evocam-se
outros tempos, evoca-se a fragilidade
da democracia, a memória de uma
Itália “mais solidária” — embora es-
sas analogias, como diz Moretti em
conversa telefónica com o Ípsilon,
fiquem mais a cargo de cada espec-
tador. O que ele não pode, ouvindo
vítimas e torturadores, é “ser impar-
cial”. Di-lo no filme, e explica-o nesta
conversa.

O documentário de
longa-metragem é uma raridade
na sua obra, e já não fazia
nenhum desde La Cosa (1990),
há quase trinta anos. Como se
lembrou de abordar esta
história neste registo?
Bom, isto foi uma história muito
conhecida na altura, e todos acom-
panhámos o que se passava na
embaixada italiana em Santiago no
período a seguir ao golpe de estado.
Mas entretanto passou tanto tempo
que eu próprio já me tinha esqueci-
do. E quando, por altura de uma
visita a Santiago, alguém ma lem-
brou, pensei que era uma bela histó-
ria, e que se devia fazer um filme
sobre ela.
Tem recordações pessoais desse
tempo? Tinha vinte anos...
Sim, tinha vinte anos. E ter vinte
anos nos anos 1970 era diferente de
ter vinte anos agora. Havia uma rela-

ção diferente com o mundo, uma
curiosidade diferente. E nós, os ita-
lianos, de um modo geral, seguimos
muito apaixonadamente a situação
chilena. Também aqui tínhamos os
democratas-cristãos, os comunistas,
os socialistas, os católicos de esquer-
da... em suma, havia muitas analo-
gias entre os dois países. Portanto,
foi com muita paixão que acompa-
nhámos a vigência do governo de
Allende, e tudo o que foi acontecen-
do a seguir ao golpe de estado.
Os refugiados chilenos em Itália
que o seu filme mostra,
conhecia-os? Há ali gente das
suas relações pessoais?
De modo geral, não. Só um deles, a
quem aliás tinha oferecido um peque-
no papel em Habemus Papam — Temos
Papa, onde ele desempenhava a per-
sonagem de um cardeal sul-america-
no. É o último que aparece a falar em
Santiago, Itália.
É um filme sobre um episódio
histórico localizado no tempo,
mas naturalmente o espectador
vê-o com o pensamento nesta
época. E lá para o fim, fala-se
com nostalgia de uma Itália
mais idealista, mais solidária.
Pretendia isto, deixar um
comentário à Itália
contemporânea a partir do
Chile de 70?
Não, não... Eu não escrevi os diálogos
do filme, são os deponentes que
fazem esses comentários. Mas claro,
isso é certo: a partir daí, vendo-se o
filme, cria-se uma imagem de con-
traste ou de confronto entre a Itália
de 70 e a Itália de agora. Mas não era
o meu programa nem tinha um dese-
jo demonstrativo. Não, eu queria

“O que mais


me impressionou


foi a total ausência


de arrependimento


perante


as consequências


do que fizeram.


O que acaba ser um


reflexo do que o Chile


ainda é actualmente:


um país partido


em dois”


apenas contar esta história. Se o
espectador for levado a pensar nessas
comparações, muito bem. Mas não
se trata de algo que a priori estivesse
inscrito nas minhas intenções.
Não escreveu os diálogos, mas
escolheu-os, montou-os...
Certo, claro. Mas a minha motivação
para fazer um documentário nunca
é a vontade de demonstrar nada.
Faço um documentário porque estou
curioso com qualquer coisa. Quando
fiz La Cosa foi porque estava real-
mente curioso com o debate que
estava a acontecer no Partido Comu-
nista Italiano, e porque queria saber
mais sobre ele. Não pretendo ter um

Nanni Moretti olha para
o golpe de estado que depôs
Allende e impôs Pinochet,
a partir do papel de porto
de abrigo que a Itália
desempenhou
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