Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

26 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019


Ficção


Retrato


em mosaicos


Peregrinação é sobretudo um
magistral retrato do mundo e
do seu autor. É um estranho
objecto literário: não é um
romance, nem um livro de
viagens, nem de memórias,
tão-pouco uma autobiografia.
José Riço Direitinho

Peregrinação
Olivier Rolin
(Trad. de Joana Cabral)
Sextante

mmmmm


No final de 2018, o
escritor francês
Olivier Rolin (n.
1947), a convite da
Fundação Dom
Luís I, passou dois
meses numa
residência
literária em
Cascais. Foi lá que escreveu grande
parte do livro agora traduzido —
publicado ao mesmo tempo em
França, pela editora Gallimard, com
o título Extérieur Monde, acaba de
ser incluído na lista final dos
candidatos ao prémio Goncourt. O
título Peregrinação foi escolhido
pelo autor para a edição portuguesa.
Quem conhece a obra de Olivier
Rolin (apenas um dos seus livros não
está traduzido em português) sabe
do seu fascínio por viagens, desde
Porto-Sudão (ASA, 1995) a Sibéria
(Tinta-da-China, 2016), passando
pelo inclassificável Suíte no Hotel
Crystal (ASA, 2006), em que
descreve várias dezenas de quartos
de hotel onde pernoitou um pouco
por todo o mundo.
Peregrinação é um estranho
objecto literário (como outros livros
do autor): apesar da arrumação na
categoria “romance” não ser de
excluir, pois no “romance” tudo
cabe, este não é um livro de viagens,
nem de memórias, tão-pouco uma
autobiografia. Mas fala sobretudo

das muitas viagens da vida de um
nómada. Peregrinação é sobretudo
um retrato do mundo, em vários
tempos, e do seu autor. E não deixa
de ser curiosa a epígrafe que Rolin
escolheu para o começar (o
parágrafo final do livro O Fazedor,
de Jorge Luis Borges), que define
este “objecto literário” melhor do
que um qualquer texto erudito:
“Um homem propõe-se a tarefa de
desenhar o mundo. Com o passar
dos anos povoa um espaço com
imagens de províncias, de reinos, de
montanhas, de baías, de navios, de
ilhas, de peixes, de habitações, de
instrumentos, de astros, de cavalos
e de pessoas. Pouco antes de
morrer, descobre que esse paciente
labirinto de linhas traça a imagem
do seu rosto.”
Olivier Rolin escreveu este livro a
partir da sua memória e das muitas
notas que foi tomando ao longo de
décadas de viagens: foram sessenta
pequenos cadernos. É uma
narrativa sem cronologia, levando o
leitor a uma espécie de “leitura
desorientada”, mas conseguindo,
por vezes, que ele se situe a partir de
algumas referências deixadas: um
acontecimento político, uma guerra,
o nome de um ditador. Como se
fosse fazendo o levantamento
topográfico dos rastos que o mundo
deixou numa vida, a sua. Há no livro
uma curiosa analogia ao seu
trabalho: um dia, Rolin encontrou
no Egipto um jovem remendador de
cerâmicas, que antes de colar os
cacos para refazer o objecto partido,
os olhava imóvel, em silêncio,
durante muitas horas, no meio de
“um cheiro a podridão antiga”.
Escreveu ele: “Proponho-me o
mesmo tipo de trabalho: juntar,
colar dezenas de cacos de
lembranças, para recompor um
vaso imperfeito, fracturado, de que
serei apenas o vazio central.”
O resultado é um caleidoscópio
cujas faces coloridas se vão
recompondo sem cessar para
formarem inesperadas figuras que
surgem para logo darem lugar a
outras. Como se a narrativa se fosse
desenvolvendo em pequenos
movimentos circulares, os capítulos
não muito extensos, em que um fio
vai ligando uma memória a outra. É
assim que se lembra de na ilha do
Pico ter encontrado um velho
arpoador de cachalotes — o livro
começa e termina nos Açores, em
jeito de circum-navegação — para a
seguir falar da primeira vez que
andou de avião, tinha quatro anos e
apanhou em Paris um DC4 com
destino a Brazzaville. Para poucas
páginas adiante se lembrar de um
amor que teve “quando Lisboa
ainda era uma pequena cidade
adormecida”.
É desta maneira, não
propriamente por temas, que uma
lembrança vai levando a outra,
como quando se refere a ruínas, e
depois vai contando sobre esses
“lugares de ruínas” que visitou: em
Cartum, uma casa com uma varanda
à beira do Nilo Azul, e em Goa a casa
Menezes de Bragança, onde morou
Richard Burton, não o actor mas o
descobridor das nascentes do Nilo,

entre outros lugares. Olivier Rolin
confessa que não é um fanático das
peregrinações literárias, mas
mesmo assim comove-se ao ver os
lugares onde moraram os escritores
que admira: conheceu em Praga
uma mulher que conheceu Kafka, e
uma outra idosa que em Trieste
conhecera Joyce, e ainda em Trieste
a conversa com a filha de Italo
Svevo, também a casa da família de
Nabokov (“a modéstia não era a sua
principal qualidade”), em São
Petersburgo; é com alguma ironia
que descreve o encontro falhado
com Borges, em Buenos Aires.
Peregrinação está repleto de
referências à literatura, e o exercício
literário que o autor faz neste livro
poderia também titular-se
“Digressões”, numa referência não
apenas a Laurence Sterne mas
também a Montaigne.
Ao longo de todo o texto, Olivier
Rolin vai-se confrontando, de
maneira obrigatória, com o seu
passado (ou com esses passados que
fazem o seu presente, como referiu
numa entrevista a este jornal), por
isso relembra, por exemplo, os
inúmeros jantares solitários que teve
(“algum defeito em mim que me
condenava a tal”) ou se depara com
o envelhecimento, que ele compara
a um curioso afastamento: “como
um litoral visto de um barco que se
faz ao mar, a paisagem a desvanecer
lentamente”. Fala também do seu
gosto algo melancólico por
cemitérios, “lugares onde o passado
se manifesta discretamente,
silenciosamente”, e recorda um
cemitério cristão no Cairo, o
cemitério judeu de Praga, um
cemitério de deportados na Nova
Caledónia, o cemitério dos Reis
Magos em Goa, um outro em
Valparaíso e um em Cabul. As
guerras do Líbano, da Jugoslávia e
do Afeganistão, onde esteve, fazem
também parte do “retrato em
mosaicos” que é este labirinto de
histórias magistralmente escrito (e
cuidadosamente traduzido).

Maridos de


pouco alcance


Ivone Mendes da Silva, neste
seu segundo livro, produz
uma espécie de inversão do
diário. Gustavo Rubim

A Mulher do Meio
Ivone Mendes da Silva
Língua Morta

mmmmq


Uma das pragas
contemporâneas
( já incluindo a da
palavra “contem-
porâneo”) é a do
enxame de livros
onde não passa a
mais pequena
noção do que seja
escrever. Livros em que o autor
apenas quer pôr o livro no rol dos
seus feitos, sem que, lá dentro, se
encontre uma página cuja escrita se

imponha só por si. A Mulher do
Meio, de Ivone Mendes da Silva,
nada tem a ver com tal entulho.
Nesse sentido, é um livro apenas
porque não há outro nome que o
designe. É o segundo desta escritora
(nascida em 1959, professora do
ensino secundário, com textos
publicados na Ler e na Egoísta) no
mesmo registo, depois de Dano e
Virtude, em 2017.
Ou seja, um diário sem datas,
dividido em 290 entradas (ou
“fragmentos”), escrito por uma
professora de Português saturada da
profissão e sempre à procura dos
momentos solitários em que pode
dedicar-se ao seu diário. Mas nada
de fazer desaparecer o mundo, de
abstracção forçada, de petulância
teórica. O diário regista memórias,
observações da vizinhança,
pequenos fenómenos: “Tenho
muitas memórias que não são
minhas. (...) Tenho tantas memórias
que poderia morar nelas como
quem escolhe uma cidade para
ficar.” O fragmento 3 é menos do
que um programa e mais que mera
declaração de intenções. É o
auto-retrato da escritora enquanto
“mulher do meio”, crente e
praticante de uma literatura
desinchada, mas escrita: “Sempre
tive uma longa admiração pelas
pessoas que escrevem sobre
assuntos graves e sérios. A mim o
que me prende é a sombra do
candeeiro recortada na parede. As
luzes acesas nas janelas do prédio
em frente. A ramada agitada das
tílias lá em baixo. Construo
laboriosamente um léxico para a
banalidade e dele me sustenho.”
A construção desse léxico do
banal experimentado na primeira
pessoa faz pensar em autoficção.
Mas A Mulher do Meio prescinde do
princípio (afinal simples) que define
a autoficção que hoje prolifera, ou
seja, o princípio de que “a minha
vida dava um romance”. Esse tipo
de pretensões — por norma,
recheadas de viagens, relações
falhadas, culpas familiares, dramas
identitários — não tem aqui lugar.
Primeiro porque, mesmo
banalizando-se, são “assuntos
graves e sérios”. Depois, porque na
economia de um diário, tudo o que
vem à memória está de passagem. E,
assim, o filho e a nora aparecem a
dada altura (desaparecendo logo a
seguir) só porque uma mulher a
atravessar a rua “com uns sapatos
vermelhos muito altos e elegantes”
faz lembrar a nora “no dia em que
casou com o meu filho muito alta e
muito bonita com uns inesperados
sapatos vermelhos”.
Quinze parágrafos mais tarde,
reaparecem numa área de serviço
onde a diarista vai tomar café tendo
o Natal já cumprido: “Guardo as
minhas imagens. O meu filho a
fumar na varanda e a dizer-me
cansado e satisfeito que não sai da
cozinha há dois dias. A minha nora e
os seus gestos exactos e o seu
deslizar de sílfide impaciente por
entre aromas de alecrim e tomilho.”
Deste ponto de vista, o fragmento 93
dá um exemplo de topo. Depois de
mencionar três mulheres, uma a sair

Livros


NUNO FERREIRA MONTEIRO/ARQUIVO

Olivier Rolin passou em 2018 dois meses numa residência literária
em Cascais, onde escreveu parte deste livro

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