Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019 | 27

o maravilhoso e o inesperado
surgem no tecido do habitual.
Pense-se, no quadro inicial do conto
que dá nome a esta recolha de
narrativas breves. Em “O Estendal”,
uma mulher (apresentada sem mais
designações, como em vários livros
de Rocha) estende roupa em
aparente normalidade, até que tudo
se descompõe — “E, enquanto a ia
tirando, pegava em pequenas
bonecas que vinham escondidas no
meio da roupa e lançava-as para
longe, para uma espécie de mato
onde estavam escondidos cães
ovelhas.” (p.11) Ainda que este seja
apenas um assomo, que produz os
seus efeitos residuais, ainda no
arranque de tudo, já se sulcou o
caminho para futuros desarranjos.
Ao que não será alheio o mato que
abriga cães e ovelhas, espaço pelo
qual se poderá aceder ao
desconhecido. O estendal, que
comparece no título, acabará por
exibir, pendurado nas suas cordas,
o conjunto inconcebível de um
grupo de recém-nascidos. É como
se, na escrita de Jaime Rocha, a
normalidade contivesse sempre um
fundo mais verdadeiro, mas muito
mais terrível, que a certa altura já
não fosse possível conter. Esse
núcleo constituiria algo como uma
verdade oculta, por fim revelada.
São cenários de conflito armado,
de destruição, aqueles que se
erguem em “O Último Parente de
Justino” e em “A Mulher Que
Aprendeu a Responder” — “Há uma
depressão na terra que atinge e

do veterinário, duas que vêm
conversando à saída de um
take-away, diz isto: “Do outro lado
da rua acena-me um homem com
quem já fui casada e depois
atravessa a rua para me
cumprimentar. Escureceu há pouco
e a noite ainda está cheia de
pessoas.” Do tal homem, nem mais
um vestígio. Ivone Mendes da Silva
produz, assim, uma espécie de
inversão do diário, torcendo o
motivo central que governa o género
e a expectativa dos seus leitores.
Em vez de intimismo, A Mulher do
Meio enfatiza todos os efeitos de
distância. Como se não fosse outro o
privilégio, o poder da diarista. De
novo em metáfora e experiência
conjugal: “Detesto proximidades
nocturnas. Durante os casamentos


mas sabe que há mais para ver do
que poderia haver para contar. E do
que se vê, vital é encontrar a
nomeação honesta, que dá fórmulas
inesquecíveis: “As mulheres chegam
cansadas de uma manhã onde lhes
adivinho as camas feitas de lavado e
as refeições para a semana já
prontas no frigorífico. Trazem
maridos de pouco alcance e não
conversam.” Depois disso, vem a
escrita, que, segundo Ivone Mendes
da Silva, é a arte enviesada de trazer
a literatura até ao café e, perante
estas mulheres, perguntar: “Se elas
agora gritassem que anjo as
ouviria?”

O espaço


circular da vida


Contos que marcam o
regresso de um dos autores
mais singulares na poesia,
dramaturgia e ficção
portuguesas. E em que a
estranheza é uma construção
impecável. Hugo Pinto Santos

O Estendal e Outros Contos
Jaime Rocha
Relógio D’Água

mmmmq


Os mundos que Jaime Rocha cria
na sua escrita existem
independentemente (ou em

grande liberdade) dos géneros
literários praticados pelo autor. O
que não quer dizer que se defenda
a indiferença perante a expressão
distinta da sua poesia, do teatro
que tem escrito e da ficção que vem
assinando. Propõe-se, sim, que, em
diferentes modalidades, Jaime
Rocha tem mantido uma invulgar
coerência de temáticas, recursos,
procuras que se diriam obsessões
da sua arte. São algumas delas o
mal, a loucura e a morte, o insólito
e a reconfiguração do mundo
natural através de formações
animais e vegetais imaginárias,
inviáveis, espectrais.
Estamos, assim, perante uma obra
que é como uma encruzilhada em
que se encontrassem o fantástico e
o realismo, o verosímil e o
inconcebível. Tanto a poesia,
quanto o teatro e a narrativa de
Jaime Rocha têm partido de
fundamentos que articulam estas
variáveis de uma forma que torna a
produção do autor um lugar
especialmente demarcado.
Nos livros de Jaime Rocha é como
se a estranheza fosse um miolo, um
conteúdo encoberto que desse
forma e aparência à normalidade,
mas que se
rompesse através
de qualquer
junção
demasiado frágil,
como uma
costura cediça. É
assim que o
desvio da norma,

que tive o que sempre me
incomodou mais foi ter de dormir
acompanhada. Mas é evidente que
uma pessoa não pode dizer agora
saia daqui e vá dormir para outro
lado que eu quero ficar sozinha.”
Em tom menos cómico, numa das
cinematográficas cenas de café que
suportam este micro-universo:
“Levanto-me para pagar e a menina
diz estive para ir perguntar se a
senhora queria outro café mas vi-a
tão concentrada parecia tão distante
que não quis incomodar.
Agradeço-lhe a atenção e saio. É essa
a minha condição. Distância e
concentração. Delas me mantenho.”
Já mais para o final, um enunciado
quase sobranceiro mas sempre
muito distinto, em tom e sentido, da
antropofobia típica do Bernardo
Soares que os desassossegos de
Ivone Mendes da Silva fazem
lembrar: “Acho muita piada às
pessoas desde que se mantenham a
uma distância conveniente.”
Não se começa a obter, assim,
senão um relance desta prosa.
Saboreá-la parágrafo a parágrafo é o
método adequado. (Razão pela qual,
diga-se de passagem, se fica mais
sensível às gralhas que a revisão
deixou passar.) Notar as derivas, a
técnica do flash sóbrio, o esfumar da
descrição em especulação. E
admirar o ponto de vista parcial que
apura a figuração da vida das
mulheres numa cidade de província.
Nas suas idas e vindas, a narradora
quase não dispõe de histórias para
contar (e esforça-se por não tê-las),

A escrita, segundo Ivone
Mendes da Silva, é a arte
enviesada de trazer a literatura
até ao café


MARGARIDA TEODORA TRINDADE

FRATERNIDADE ii
uma peça de miguel moreira | útero

13’SET


À espera de beckett


ou quaquaquaqua
encenação jorge louraço figueira

21’SET


tim


bernardes


22’SET


estreia nacional

http://www.teatroaveirense.pt

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