Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1

28 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019


as colheitas os animais. O ar
tornou-se irrespirável” (p.17). E
embora cada um destes contos
apresente a guerra numa
perspectiva diferente — histórica e
imaginária —, ambos poderão
evocar o pano de fundo de O
Regresso de Ortov (Companhia das
Ilhas 2013) — “A Europa afundou-se,
o mar subiu e engoliu a Grécia, a
Itália, metade da França e metade
da Espanha.” Porque a luta é outra
face dessa normalidade cujo âmago
é a perversão, um reverso
permanente da medalha. A insânia,
como não poderia deixar de ser, no
autor de um livro como A Loucura
Branca (Relógio D’Água, 2014), é
outro índice dessa condição. Um
impulso que percorre muitas destas
personagens e dos enredos em que
elas, mais do que procurarem
caminhos, inevitavelmente se
perdem. No entanto, sem aparato
nenhum, nem ofuscação de um
trabalho que nunca deixa de ser um
projecto coeso e sólido.
O conto “A Gaiola do Senhor
Flor”, por exemplo, quase resiste a
desocultar a estirpe de loucura do
seu protagonista. Uma vez mais, é a
estreitíssima fronteira da dita
normalidade que fornece a preciosa
ilusão à narrativa e ao microcosmos
por ela criado. Flor traz um conjunto
de objectos, entre os quais aquele
que o título torna óbvio, com os
quais pretende agradar a mulher; no
entanto, o leitor só repentinamente
se aperceberá de que a personagem
é um viúvo. E, nesse ponto, já não
será a excentricidade a impor-se
como se fosse um invasor, mas o
inevitável de certas manifestações
que a narrativa vinha disseminando
até o terreno estar preparado para
aquela floração estranha mas
necessária. Desse modo, quando, no
fim, se dá a metamorfose do Sr. Flor,
ele não será uma Fénix, mas uma
outra espécie de Gregor Samsa,
como o Mateus de A Rapariga sem
Carne (Relógio D’Água, 2012). Se o
outro marinhava pelas paredes, Flor
também subirá, mas em pleno voo,
o que o liberta dos naturais
constrangimentos de ser terrestre. O
entrelaçar dos acontecimentos,
sobretudo na conclusão deste conto,
é de tal forma imbricado, que não é
o risível de um homem convertido
em ave que nos toca, mas o fundo
trágico de um ser destinado a
perecer e abdicar dos laços que


Cinema


Estreiam


Pássaro


que não voa


A adaptação do romance
O Pintassilgo, de Donna Tartt,
ao cinema é um desastre
completo e sem remissão
possível. Luís Miguel Oliveira

O Pintassilgo
The Goldfinch
De John Crowley
Com Ansel Elgort, Nicole Kidman,
Sarah Paulson, Jeffrey Wright

a


John Crowley até tinha feito obra
limpa com Brooklyn, mas este O
Pintassilgo, que parte de uma base
semelhante (é também a adaptação
de uma matriz literária, no caso um
romance de Donna Tartt vencedor
de um Pulitzer), é um desastre
completo e sem remissão possível.
Assente num tema que tem sido
recorrente no cinema americano do
século XXI, o “trauma” e a sua
superação (não é por acaso que o
acontecimento crucial é um

atentado terrorista num museu,
onde o jovem protagonista perde a
mãe), o filme nunca encontra uma
maneira de fazer funcionar
eficazmente a sua complicada
estrutura, presumivelmente
importada do romance, cheia de
flashbacks e flashforwards, o que
resulta numa narrativa sempre
dispersa, nunca coesa, a viver de
fragmentos e de cenas curtas (e de
algumas repetições, imagens que
Crowley desejaria que se tornassem
um leitmotiv) cuja acumulação não
constrói nada — nem mesmo um
sentido de propósito que ultrapasse
a simples ilustração, embrulhada
em toques de “prestígio”, do
romance original. Abundam os
clichés do filme de coming-of-age, as
metáforas grandiloquentes mas
ocas (as alusões à “genuinidade” e à
“falsidade”, a partir do quadro
flamengo que dá título ao filme), as
personagens mal desenvolvidas, os
actores que se passeiam com ar
perdido (o olhar vítreo de Nicole
Kidman podia ser uma espécie de
“comentário” ao filme em que está
metida), o recurso à música,
omnipresente, para criar a ilusão de
alguma profundidade emocional. É
muitíssimo pobre, duas horas e
meia de um sofrimento
perfeitamente dispensável.

O olhar vítreo de Nicole Kidman podia ser uma espécie de “comentário” ao filme em que está metida

AS ESTRELAS
DO PÚBLICO

Jorge
Mourinha

Luís M.
Oliveira

Vasco
Câmara

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

Ameaça em Alto Mar mmmmm – –
Booksmart - Inteligentes e Rebeldes mmmmm – –
Dor e Glória mmmmm – mmmmm
Era uma Vez... em Hollywood mmmmm mmmmm mmmmm
O Falcão Manteiga de Amendoim mmmmm – –
Um Segredo de Família mmmmm mmmmm mmmmm
O Último Amor de Casanova – mmmmm mmmmm
Variações mmmmm mmmmm mmmmm
Vem e Vê mmmmm – mmmmm
Amazing Grace mmmmm mmmmm –
O Pintassilgo mmmmm a –
Santiago, Itália mmmmm mmmmm –

e garantem a sua subsistência — e cuja
única saída é a irrealidade. Destino
só aparentemente diferente cabe ao
protagonista de “Stress”. Onde Flor
encontra escapatória na irrealidade
da sua transformação, José Lúcio
podia dizer, como o protagonista de
“O Homem dos Sonhos” de Mário de
Sá-Carneiro: “eu tenho também
tudo quanto não existe” (Céu em
Fogo, in Verso e Prosa, Assírio &
Alvim, 2010). Ideias fixas,
fantasmas, visões, todos conduzem,
por fim, ao único plano que pode
subsistir: o onírico. Não através da
quebra, do salto, ou do corte, mas
de uma evolução que mal somos
capazes de detectar. E que, no fim,
uma vez mais, se revela inelutável.
“O Homem do Embrulho” e “A
Mulher das Muletas” são dois dos
contos que mais contribuem para a
integração destas narrativas no
quadro da produção do autor.
Ambos fazem reviver a personagem
de Ortov, que já conhecíamos de “O
Mal de Ortov” (Azzedine e Outras
Peças, Relógio D’Água, 2009) e de O
Regresso de Ortov, (Companhia das
Ilhas, 2013). Transportada do
género dramático para a ficção, a
personagem retém a sua
capacidade de atrair, dir-se-ia, as
convulsões e a insanidade alheia (e
ocultar a própria?), como um
pára-raios em plena tempestade.
Desvalidos, marginais, tocados pela
loucura, todos parecem convergir
para ele. A narrativa que o
apresenta nunca deixa
perfeitamente claro se Ortov
participa na loucura ou se a observa
a partir de uma distância cautelosa.
À semelhança do que acontecia
num livro de poemas de Jaime
Rocha (Necrophilia, Relógio D’Água,
2010), “tudo se transforma numa
doença”. A enfermidade é uma das
formas como mais evidentemente
se manifestam estas narrativas e os
seus intervenientes. Possivelmente
porque lhes cabe o terrível
enquadramento de um “espaço
circular”, o mesmo de que se falava
noutro dos seus livros de poemas
(Lâmina, Língua Morta, 2014). Não
se tratará, porventura, de
desespero, mas de um
entendimento peculiar da odisseia
humana. Para Jaime Rocha, ela é um
caminho minado por sentidos
ocultos, por terríveis reversos,
perturbações iminentes, um escuro
que sucede a toda a hipótese de luz.
NUNO FERREIRA SANTOS


Jaime Rocha tem mantido uma coerência de temáticas e recursos

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