30 | ípsilon | Sexta-feira 13 Setembro 2019
Discos
Clássica
Louvor de
Bernard Haitink
Dois registos imprescindíveis
de um intérprete de eleição
de Bruckner e Mahler, que
agora se retirou depois de
uma gloriosa carreira de 65
anos. Augusto M. Seabra
Mahler
Sinfonia nº3
Gerhild
Romberger
Augsburger
Domsingknaben
Coro Feminino e Orquestra
Sinfónica da Rádio da Baviera
Bernard Haitink
2 cds Br Klassik, imp. CNM
mmmmm
Bruckner
Sinfonia nº6
Orquestra
Sinfónica da
Rádio da Baviera
Bernard Haitink
2 cds Br Klassik, imp. CNM
mmmmm
Na passada sexta-feira o holandês
Bernard Haitink, dirigiu o seu
último concerto, aos 90 anos.
Numa derradeira digressão, com a
Filarmónica de Viena, Haitink
dirigiu o Concerto para Piano nº4
de Beethoven, sendo solista
Emanuel Ax (substituindo o
previsto Murray Perahia, que
continua com problemas físicos) e,
dir-se-ia que inevitavelmente, a
Sétima Sinfonia de Bruckner, com
dois concertos, a 30 e 31 de Agosto
no Festival de Salzburgo, a 3 de
Setembro nos Proms
em Londres, e a 6 no Festival
de Lucerna.
Mas a despedida já tinha
começado antes. A 15 de Junho
passado ele havia dirigido a
primeira orquestra de que foi
titular, a Filarmónica da Rádio da
Holanda, na sala do
Concertgebouw, em Amesterdão,
precisamente com a Sétima de
Bruckner, a mesma obra que havia
dirigido no seu primeiro concerto
com aquela formação, em 1954.
Pesquisando na Internet pelas
palavras “Bruckner Seventh
Haitink” podemos apreciar essa
interpretação — e é impressionante
o que Haitink consegue fazer com
uma formação modesta nessa obra
tão grandiosa.
Já agora, nessa mesma busca,
encontramo-lo também a dirigir, a
22 de Julho, essa obra com a
Filarmónica de Viena como viria a
ocorrer na digressão final — e, de
algum modo, por essa via é-nos
possível uma aproximação a esta
despedida.
Foram 65 anos, 65, de uma
ímpar e gloriosa carreira! O legado
fonográfico é imenso: entre novos
PAULO PIMENTA
registos e reedições com diferentes
coplagens, são mais de 500 discos.
Bernard Haitink começou, já se
disse, por ser maestro titular da
Orquestra Filarmónica da Rádio da
Holanda. Em 1959 tornou-se
primeiro maestro da mais
importante formação neerlandesa,
e uma das mais destacadas do
mundo, a Orquestra do
Concertgebouw, e dois anos depois
maestro principal, uma posição que
manteve até 1988. Por mais que uma
vez demitiu-se ou ameaçou
demitir-se do cargo directivo na
orquestra, em protesto contra
cortes orçamentais, mas acabaria
por voltar, como maestro titular,
depois honorário e enfim patrono.
Apesar de ser solicitado por várias
outras orquestras, e das mais
relevantes, a ligação ao
Concertgebouw permanece a mais
saliente e aquela que deixou um
maior lastro discográfico.
A Filarmónica de Londres, a
Staatskapelle de Dresden, a
Sinfónica de Boston, a Filarmónica
de Berlim, a Sinfónica de Chicago e,
recentemente, a Filarmónica de
Viena foram orquestras que o
solicitaram como maestro director,
principal maestro convidado,
maestro honorário ou patrono.
Como se deduz desta prestigiosa
lista, Haitink foi sobretudo um
maestro sinfónico, com Bruckner e
Mahler no cerne do seu reportório,
e Brahms também ainda que não
com igual distinção (sendo todavia
de referir que em tempos a Philips
publicou uma Symphony Edition
com as integrais de Brahms,
Bruckner e Mahler). Mas importa
recordar que ele fez também uma
integral das Sinfonias de
Chostakovich. Quanto a Beethoven,
pese ainda também uma integral
das Sinfonias, o que mais se salienta
é o facto de ter sido como que um
cúmplice de eleição, dirigindo os
Concertos para Piano
sucessivamente com Claudio Arrau
(com o qual fez também os
Concertos de Brahms), Alfred
Brendel e Murray Perahia.
Nos últimos anos Haitink encetou
também importantes colaborações
com duas outras formações, com o
seu quê de desconcertante, porque
essas são em absoluto opostas; por
um lado aquela que é neste
momento a mais esplendorosa
orquestra para o reportório
pós-romântico, a Sinfónica da Rádio
da Baviera, inevitavelmente
dedicando-se a Bruckner e Mahler;
por outro lado, a Chamber
Orchestra of Europe, abordando
Beethoven, Schumann e Brahms.
Apesar de ter sido director
musical do Festival de
Glyndebourne e da Royal Opera
House não creio, de modo nenhum,
que tenha sido maestro convincente
em ópera. E assinale-se o
curiosíssimo caso, de alguma
estranheza mesmo, que um tal
cultor do pós-romantismo tenha
praticamente negligenciado
Richard Strauss, autor de quem a
sua obra de predilecção foi sim uma
ópera, e longe de ser das mais
conhecidas, a Daphne.
Haitink foi pois, reafirme-se, um
intérprete de eleição de Bruckner e
Mahler.
Com Bernstein, Solti e Kubelik ele
foi um dos “quatro mosqueteiros”
que nos anos 1960 realizaram
integrais discográficas das Sinfonias
de Mahler decisivas ao
reconhecimento do compositor —
“o meu tempo virá” tinha dito
Mahler, e foi então que isso
sucedeu. Tal como Bernstein,
Haitink continuou a dirigir
assiduamente Mahler para além
dessa integral com o
Concertgebouw , com especial
predilecção pela Segunda e
sobretudo a Terceira Sinfonias. As
mais exaltantes interpretações
dessas obras que tive a
oportunidade de ouvir foram ambas
dirigidas por ele, apenas com um
dia de intervalo, a Segunda com o
Concertgebouw, a Terceira com a
Filarmónica de Viena, no Festival
Mahler em Amesterdão, em Maio de
- Mas, ao contrário dos outros
“mosqueteiros” foi também um
grande intérprete de Bruckner.
A sua primeira gravação da
Terceira Sinfonia de Mahler, a que
se inclui na integral, tem um valor
particular, a de contar com
Maureen Forrester, a qual, com a
óbvia excepção de Kathleen
Ferrier, foi a maior das cantoras
mahlerianas. Retrospectivamente,
todavia, esse primeiro registo da
obra é o esboço de uma concepção
que amadureceria. Foi na segunda
gravação, com Jard van Nes e a
Filarmónica de Berlim, que
Haitink, plenamente afirmou, e de
modo magistral, o seu
entendimento da obra. Desde
então a concepção não mudou,
houve sim uma maturação, Esta
gravação com a Sinfónica da Rádio
da Baviera é sua sétima da obra!
É um registo colossal. Como está
latente na obra mas poucos o
conseguem concretizar, esta
Terceira Sinfonia é todo um mundo
— é uma gravação absolutamente
superlativa, uma das máximas da
obra.
De certa maneira há um
paralelismo entre a Terceira
Sinfonia de Mahler e a Sexta
Sinfonia de Bruckner — também
esta é a mais difícil do conjunto.
Sem a imponência das
subsequentes três finais, a Sexta é a
mais “audaciosa” das sinfonias de
Bruckner — a caracterização foi feita
pelo próprio. É uma obra ingrata,
“mal amada”: o autor apenas ouviu
um dos andamentos — a estreia,
dirigida por Mahler, foi póstuma — e
vários eminentes brucknerianos
nunca a abordaram sequer.
No presente registo, as linhas dos
baixos com a pontuação dos
violinos e depois a explosão dos
metais e do todo orquestral
instauram logo no início um
ambiente de inquietude. Há um
consumado domínio não apenas do
conjunto mas de todos os naipes,
dessa “audácia” da obra.
São dois registos
imprescindíveis, pateando a
grandeza de Bernard Haitink, que
deixa um imenso legado.
O holandês Bernard Haitink tem um legado fonográfico imenso:
entre novos registos e reedições, são mais de 500 discos