Público - 13.09.2019

(Martin Jones) #1
Público • Sexta-feira, 13 de Setembro de 2019 • 9

ESPAÇO PÚBLICO


Escândalos judiciais


legais?!


I

magine que havia sérias suspeitas de que um
piloto de avião era alcoólico e que, enquanto
não se apurava se era ou não alcoólico,
continuava a pilotar diariamente aviões com
centenas de passageiros. Estava de acordo?
Viajava nesse avião? Deixava um familiar ou
amigo, ou até um inimigo, viajar nesse
avião? Eu não viajava nem deixava viajar.
É uma vergonha para a Justiça e para todos
nós que o juiz Rui Rangel tenha assumido de
novo as suas funções de juiz desembargador
no Tribunal da Relação de Lisboa.
Rui Rangel é um dos arguidos da Operação
Lex, um processo em que, segundo a
imprensa, é suspeito de recebimento
indevido de vantagem, tráÆco de inÇuências,
branqueamento de capitais e fraude Æscal. O
impacto público deste processo judicial foi e é
enorme. A opinião pública Æcou
profundamente chocada — felizmente — com
estas graves suspeitas. É difícil, de resto,
imaginar, em termos da judicatura, suspeitas
mais demolidoras e, sobretudo, que ponham
mais em causa a conÆança que nos devem
merecer os magistrados.
Todos sabemos que este juiz, como
qualquer arguido, se presume inocente até à
condenação deÆnitiva, e que o Estado tem de
respeitar essa presunção não o tratando como
culpado. Mas Rui Rangel não é um qualquer
funcionário público da Direcção-Geral das
Florestas ou da Energia. Faz parte de um
órgão de soberania. É juiz num tribunal
superior.
Não estamos a falar de banqueiros
suspeitos dos mais graves crimes que se
passeiam por aí de consciência tranquila e um
ar de permanentes férias. Prestaram caução e
os processos são de muito difícil investigação.
Nem estamos a falar de políticos suspeitos de
corrupção com sucessivas declarações
públicas da maior honestidade e do rigoroso
cumprimentos da lei e sempre desejosos de
esclarecer os tribunais e a opinião pública. Os
processos levam muito tempo a investigar e a
justiça não pode ser demasiado célere.
Compreendemos tudo isso e até aceitamos,
embora, por vezes, choque ver as diferenças
de tratamento entre arguidos poderosos e
não-poderosos. Mas será que juízes vão
passar a fazer parte dos arguidos
irresponsáveis perante a opinião pública?
Sucede que o Estatuto dos Magistrados
Judiciais prevê que, instaurado um processo
disciplinar a um juiz, conexo com um
processo-crime, o Conselho Superior da
Magistratura (CSM) pode suspender
preventivamente esse juiz, tendo em conta a
indiciada gravidade da sua actuação, se
entender que a continuação do juiz no
tribunal seria prejudicial “à instrução do

processo, ou ao serviço, ou ao prestígio e
dignidade da função”.
E assim sucedeu — o CSM, em boa hora,
suspendeu da actividade judicial o juiz Rui
Rangel. Poderá ser inocente ou culpado, mas
o que não podia era estar a exercer a
actividade de julgar com as graves suspeitas
que sobre ele impendiam. Mas, diz também a
lei, esta suspensão preventiva não pode
ultrapassar os nove meses e, decorrido esse
prazo sem o processo disciplinar ter
terminado ou o processo-crime ter chegado
ao julgamento, o juiz volta a exercer as suas
funções. Isto é, evaporam-se as graves
suspeitas que sobre ele impendiam.
Claro que se fosse um juiz de 1.ª instância,
seria difícil, na prática, que voltasse à sala de
audiências. Estava sujeito a que alguém lá da
terra lhe lembrasse o seu estatuto de
arguido...
Assim não acontece no Tribunal da Relação
de Lisboa. Um lugar de muito maior
responsabilidade, mas onde os juízes
desembargadores só trabalham em gabinetes,
ninguém os vê. E
assim, segundo
noticiaram os jornais,
Rui Rangel retomou
na semana passada as
suas funções de
julgador. Em
obediência à lei dos
nove meses. É caso
para dizer que o
fetiche da lei permite
as maiores
perversões
existenciais.
O CSM ou o
presidente do
Tribunal da Relação
de Lisboa deviam,
imediatamente,
reunir-se com o juiz
Rui Rangel e arranjar
uma qualquer
solução funcional,
para que não volte a
julgar sem se terem
dissipado todas as
suspeitas. Ou será
que — como sucedeu
esta semana com o processo do sangue —
vamos passar a saber todas as semanas pelos
tablóides os processos sobre os quais o juiz vai
decidir? Com que consequências em termos
de credibilidade da Justiça?
Caso os juízes não tenham capacidade para
resolver o assunto, resta a hipótese de o
Ministério Público, num assomo de
moralidade, recusar sistematicamente o juiz
em causa em todos os processos, em nome da
preservação da conÆança na Justiça.

É uma vergonha
para a Justiça e
para todos nós
que o juiz Rui
Rangel tenha
assumido de
novo as suas
funções no
Tribunal da
Relação de
Lisboa

Advogado. Escreve à sexta-feira

Francisco Teixeira da Mota
Escrever Direito

investimento público previsto no Orçamento
do Estado para 2019. Para emendar a mão,
Mário Centeno veio há dias aÆrmar que o PS
pretende duplicar o investimento público. No
entanto, quando vemos as novas contas, o
reforço de 200 milhões de euros não chega
sequer para compensar o corte de
investimento feito pelo PE, quanto mais para
chegar perto de qualquer duplicação do
montante.
Nas mesmas declarações, feitas no Ænal de
agosto, Mário Centeno anunciava uma
redução de 200 milhões de euros na receita
Æscal em IRS. De resto, este é o mesmo
número previsto em abril no PE. Contudo,
dias depois, as novas contas do PS anunciam a
duplicação deste valor para 400 milhões de
euros porque decidiram “dar mais ambição à
redução de receita”. Contas feitas ao sabor do
vento eleitoral? Assim parece.
Podemos passar agora aos cortes
escondidos? O mesmo Mário Centeno deu a
entender prever aumentos dos salários na
função pública à taxa da inÇação já a partir de


  1. Se juntarmos esta promessa com outra
    de “recrutamento em função das
    necessidades efetivas de cada área da
    administração pública” percebemos que não
    batem certo com as contas do PE, que são as
    únicas existentes e não contemplam estas
    medidas. Promessas
    a mais para dinheiro
    a menos. Neste
    contexto, a reÇexão
    geral sobre as
    carreiras especiais da
    administração
    pública, que criam
    “um desequilíbrio
    que deve ser
    revisitado”, parece
    trazer no bico a
    revisão das carreiras
    e a respetiva redução
    remuneratória.
    Compromissos
    destes soam a
    ameaça a
    professores,
    médicos,
    enfermeiros, forças
    de segurança, etc.
    As contas certas do PS têm pés de barro,
    bem se vê. Fazem-se à medida de uma maioria
    absoluta para dispensar o escrutínio posterior.
    Poder-se-ia dizer que as promessas
    eleitorais são a fruta da época e que uma larga
    maioria delas tem um prazo de validade que
    termina na noite eleitoral. Perdoem-me por
    discordar disso. O compromisso com uma
    democracia de qualidade exige
    responsabilidade e transparência.


Presidente do Grupo Parlamentar do
Bloco de Esquerda. Escreve à sexta-feira

Pedro Filipe Soares


Foi você que pediu


contas certas?


O

programa eleitoral do PS veio
despido do seu cenário
macroeconómico. A
apresentação do programa
ocorreu em julho e, face à
ausência desses números
explicativos, os mais curiosos
foram remetidos para as contas
do Programa de Estabilidade (PE)
que o Governo enviou para
Bruxelas em abril. António Costa rompeu
com a moda que o próprio tinha lançado em
2015, não se sabendo qual o motivo para o
arrependimento.
Catarina Martins tornou inevitável o
aprofundamento das explicações quando
detalhou no debate com António Costa a falta
de rigor do seu programa eleitoral — foi nas
medidas sobre Habitação que se percebeu
melhor que o dinheiro nem daria para metade
das promessas daquela área. Assim, é com a
campanha eleitoral já em andamento que o PS
ainda anda a explicar as contas do seu rosário.
O apêndice contabilístico chegou no início
de setembro, veio batizado como “Impacto
Financeiro das Medidas no Programa Eleitoral
do PS” e ocupa umas singelas quatro páginas.
Fiscalizado o documento, saltam mais à vista
as contradições do que os esclarecimentos.
É verdade que os números não diferem
muito do previsto no PE. Não é novidade,
poderão dizer, mas isso é um problema para
as promessas eleitorais do PS. É a
manutenção dos mesmos números do PE que
esvazia as novidades do programa eleitoral
socialista. Isso explica porque grandes
promessas de “aposta na proteção social”
como a “valorização real dos rendimentos
dos pensionistas dos escalões mais baixos de
rendimentos através do Complemento
Solidário para Idosos” são para faseamento
“ao longo da legislatura de acordo com as
condições económicas e Ænanceiras
prevalecentes”. Novamente, o faseamento
será aplicável à promessa de “duplicar o ritmo
de investimento nas respostas de cuidados
continuados integrados”. Nestas frases, a
retórica é a máscara do incumprimento.
Por outro lado, as juras de amor ao
investimento público Æcam-se pela
inconsequência. O ministro das Finanças
usou o PE para cortar 0,2% do PIB no

O compromisso
com uma
democracia de
qualidade exige
responsabili-
dade e
transparência

As contas certas do PS


têm pés de barro, bem se vê.
Fazem-se à medida

de uma maioria
absoluta para dispensar

o escrutínio posterior

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