Folha de São Paulo - 06.09.2019

(ff) #1

aeee


ilustrada


C8 Sexta-Feira, 6DeSetembroDe2 019


Sempremefascinouamanei-
ra pela qual muitasfeministas


negras escreveram de modo a
nos inspiraraviver alémdador,
de não permitirmos que nossa
existência sejasomentemarca-
da por violências. Pormaisque
seja assim, postoqueasocie-
dadeéestruturada porracis-


mo,machismoecapitalismo,
muitas trazemaimportância
de encontrarmos nossas pró-
prias definições.
Aautorabell hooks—assim


em minúsculo,apedidodela—,
éuma importantefeminista ne-
graamericana, dessasque nos
fazemrefletir nessesentido.
Em umtexto, ela questiona o
álbum “Lemonade”,deBeyoncé.
Segundoaautora, por mais que
odiscouse narrativas de mulhe-
resnegras,ele seria maisumpro-
dutoque confinaessamulher a
um lugardesubmissão. Diz ho-
oks: “Parasermosverdadeira-
mentelivres, devemosescolher
alémdesimplesmentesobrevi-

veràadversidade. Devemosou-
sar criar vidas sustentadasno
bem-estareemuma alegriaide-
al. Nessemundo,oato de fazere
beber limonada serárefrescan-
te eazedo,umamisturadavida
real do amargoedodoce,enão
umafala sobre nossacapacida-
de de suportarador,mas uma
celebração da nossacapacidade
de nos movermos além da dor”.
Em um importanteartigode-
nominado“Recusando-seaSer
uma Vítima”,hooksdiscute co-

mo seria crucialofoconoen-
frentamentodador,enão so-
menteemrelatarador,pois
somenterelatar nos fixanolu-
gar de queméoobjetodadis-
criminação,logo, na figuraim-
postapor quem está no poder.
Nóstambém somos sujeitos
que pensamatransformação.
Gostodadistinção queaau-
tora fazentrevitimizaçãoere-
sistência militante—aprimei-
ra nosreduz,asegunda nos li-
berta.Importantefrisarque

vitimizaçãoaquinãotemo
significado pejorativodosen-
socomum que desrespeitaa
lutademinorias, mas sim o
sentidodeestratégia de luta.
Aautoracriticaofatode
que, muitasvezes, os grupos
quetêmprivilégios sãoosque
mais se vitimizam,comofor-
ma de ganhar visibilidade
política. Parahooks, só quem
acreditou nos discursos libe-
rais da mídia acreditaque se-
rá tratadocomo igual, em uma
sociedaderacistaemachista.
Logo, paraela, seésabido
queasociedade discrimina,
paraalém de somentefalar
sobreissoecair na identidade
vitimada,seria mais prudente
encontrar saídascoletivas pa-
ra rompercomessarealidade
comresistência militante.
Outro perigoda identidade vi-
timadaéqueasociedade ado-
ra ouvir“histórias tristes ou de
superação”,sóaceitaamulher
negranolugar da “coitada”,no
qual precisa ser guiada,enão
no lugar da altivez,doorgulho
emser oque é,como sujeito.
Em um trecho do artigo, ela
diz:“Vinda decomunidadesfe-
ministasnoSul segregacionis-
ta,eununca tinhaescutado das
mulheres negras sua vitimiza-
ção. Enfrentandoadureza, a
destruiçãocausada porfalta
eprivaçãoeconômica,ainjus-
tiçacruel do apartheidracial,
eu vivia em um mundo em que
as mulheres ganhavamforça
nocompartilhamentodesa-
bererecursos,enão por que
se juntavamnabase de serem
vítimas.Adespeitodaincrível
dor de viver no apartheidracial,
as pessoas negras sulistasnão
falavam sobrenós mesmasco-
mo vítimas mesmo quando éra-

mos humilhadas. Nós nos iden-
tificávamos maispelaexperiên-
cia daresistênciaedotriunfo
do que pela naturezadenossa
vitimização.Era umfato que a
vida eradura, que havia sofri-
mento. Erapeloenfrentamen-
todesse sofrimento comgra-
ça edignidade que uma pessoa
experienciavatransformação”.
Não há negação das estru-
turas, nãoéumdiscursovazio
eliberal, aocontrário.Justa-
menteoentendimentodeco-
mo as estruturasfuncionam a
fazpensar numa possibilida-
de de mundo em que possa-
mos ser humanas. Acho inte-
ressante como dialogacomo
poema de MayaAngelou“A in-
daAssim, Eu me Levanto”.
Angelou traz os impactos
doracismo,mas sempreode-
safia.“Vocêpode me fuzilar
compalavras/Emeretalhar
comseu olhar/ Pode me matar
comseu ódio/Ainda assim, eu
voumelevantar.”
Énão deixarador os parali-
sar, ousar sonharemummun-
do em queessedireitonosfoi
negado.Apotência dessas pa-
lavrassoacomo uma afirma-
çãometafísicadaliberdade. É
autopia que nos guiaafimde
nãonosconformarmoscom
os horrores diários.Écontar
ahistória do Brasil não só pe-
la óticadopovonegro quefoi
escravizado,mas contarapar-
tir do quilombo de Palmares.
Mover- se paraalém da dor,
ainda assim,eselevantar,são
atosrestituidores de sonhos,
de possibilidades deexistênci-
asplenas, de poder dizer: “Pa-
ra sermosverdadeiramenteli-
vres, devemos escolher além
de simplesmentesobreviver
àadversidade”.


  • Djamila Ribeiro


mestreemfilosofia política pelaUnifespecoordenadoradacoleçãodelivrosFeminismos Plurais


‘Parasermos livres, devemos escolher além de só sobreviveràadversidade’


Mover- se paraalém da dor


Linoca Souza


|DOM.FernandaTo rres, DrauzioVarella |SEG.LuizFelipe Pondé |TER.João PereiraCoutinho |QUA.Marcelo Coelho |QUI.Contardo Calligaris |SEX.DjamilaRibeiro|SÁB.Mario Sergio Conti

Free download pdf