Público - 09.09.2019

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Historiador, fundador do Livre

CONSOANTE MUDA


Ciganos: parte da nossa história e do nosso futuro


T


enho como regra que as
melhores palestras,
conferências ou
mesas-redondas que dou ou
em que participo são aquelas
em que aprendo mais do que
aquilo que ensino. Por esse critério
apenas, assumidamente egoísta,
uma das melhores palestras que fui
convidado a dar foi neste sábado na
Academia de Política Cigana que
decorreu na Figueira da Foz. Tanto
que, depois de ter dado voltas à
cabeça e à atualidade para decidir
sobre que escrever nesta crónica,
rapidamente cheguei à conclusão
de que aquilo que vos queria
mesmo falar era sobre este
encontro de (e com) os ciganos
portugueses. Venham daí comigo.
A oportunidade de estar perante
uma plateia de umas largas dezenas
de ciganos portugueses, homens e
mulheres praticamente em
paridade, jovens e mais velhos, de
diversas formações e trajetórias, foi
um privilégio que não esquecerei
tão cedo e que devo ao Bruno
Gonçalves Gomes, um dos
organizadores da iniciativa. A

Rui Tavares


minha incumbência fora falar sobre
“políticas europeias e a situação dos
Roma” [“Roma”, que vem do
romani “rom”, ou humano, é a
expressão mais abrangente que nas
instituições da UE se usa para
referência a todas as populações a
que historicamente em Portugal
chamamos ciganas]. Como habitual
em palestras que metem direito
europeu e a história da integração
europeia, o conteúdo é
forçosamente um pouco árido de
início para podermos chegar depois
às coisas que serão futuramente
mais práticas. Essa aridez é
normalmente complementada pela
tendência portuguesa para esperar
pelo Æm para fazer perguntas, e
mesmo assim apenas após um
período de prolongado e tímido
silêncio. Pois aqui, não. Logo nos
primeiros minutos, os braços
começaram a levantar-se. “Como é
que eu uso esse artigo dos
tratados?”, “Qual é a aplicação
prática da Carta dos Direitos
Fundamentais?” e por aí afora.
Poucas vezes vi uma plateia com
tanta sede de saber.
Quando despachámos os
assuntos europeus, foi a minha vez
de beneÆciar. Eu tinha uma
pergunta sobre o caló, ou seja, a
língua dos ciganos portugueses (e
ibéricos), que provém do idioma
romani (uma língua indo-europeia,
aparentada a todos os nossos

o uso do caló serviu também para
proteger uma comunidade que
estava ameaçada e é assim que
muitos anciãos ainda veem a sua
língua.
Talvez o leitor não tenha ideia
disso, mas é bem possível que todos
os dias use pelo menos uma palavra
em caló/romani. Quando em
Portugal dizemos com obsessiva
frequência “gajo” e “gaja” para nos
referirmos a um indivíduo, mais
não estamos a fazer do que a utilizar
a palavra romani “gadjó” [feminino
“gadjí], que os roma utilizam para
se referir a todos aqueles que não
são ciganos, um pouco à maneira
do hebraico “goy”, que se costuma
traduzir por gentios. Em caló, a
palavra gajó/gají passou a querer
dizer simplesmente homem e
mulher e foi assim que chegou ao
português. Mas de certa forma a
utilização íntima e informal de
“gajo/gaja” no português guarda
por esse passado romani a poesia de
nos estarmos a chamar a todos
gentios e estrangeiros, o que
verdadeiramente somos quando
vistos do ponto de vista individual
de cada um de nós...
Daqui a conversa passou
rapidamente para os contributos
ciganos para a história de Portugal
(outro: a própria palavra “calão”,
que usamos em Portugal para nos
referirmos a uma gíria ou
sociolecto, vem muito

provavelmente da própria língua
caló). Onde estão os trabalhos de
recolha sobre o contributo cigano
na cultura portuguesa, da fadista
Severa ao cenógrafo Joaquim
Benite, ou no desporto (os vários
Quaresmas) ou em outros vários
domínios logo lembrados pelos
meus interlocutores, desde os
ciganos portugueses na Primeira
Guerra Mundial aos que
participaram nas campanhas do
bacalhau?
Esse conhecimento da história é
importante para acabar com a
ignorância, que é mãe do
preconceito. Ali naquela sala havia
noção muito clara de como a
ciganofobia é quase certamente o
preconceito racista mais arreigado
na nossa sociedade em Portugal,
desde que há quinhentos anos os
seus antepassados chegaram ao
reino e em muitas cidades foram
proibidos de Æcar mais do que três
dias. Mas conhecer mais signiÆca
enriquecer o futuro. E ali naquela
sala estavam ciganas e ciganos com
licenciaturas e mestrados,
mediadores interculturais e
ativistas, cheios de vontade de
aprender e ensinar e com ganas de
chegar aos lugares de representação
política, o que já tarda. Por uma vez,
saí dali otimista em relação ao
futuro dos ciganos portugueses.

Esse conhecimento
[da história dos
ciganos] é importante
para acabar com a
ignorância, que é mãe
do preconceito

idiomas europeus com exceção do
basco, húngaro, Ænlandês e estónio,
mas sobretudo próxima do
sânscrito e de outras línguas
indo-arianas) e que foi sendo
inÇuenciada pelo português ao
longo dos séculos (e no resto da
península pelo castelhano, catalão,
etc.). De um momento para outro,
várias mãos se levantaram e ali
tinha eu logo uma dúzia de
professores. O caló está em perigo;
pouca gente o fala quotidianamente
e só alguns dos anciãos têm um
vocabulário mais extenso. Talvez
não haja mais do que alguns poucos
milhares de falantes de caló. Se uma
língua que morre leva consigo uma
parte da humanidade, é crucial
envidar esforços para que esta parte
da cultura portuguesa cigana não
desapareça — mas esses esforços
têm de ter toda uma sensibilidade
porque, durante gerações e séculos,

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