Folha de São Paulo - 10.09.2019

(ff) #1

  • ClaraBalbi


TREZETÍLIAS(SC)“Os europeus
falam que meus filmes mexem
commagianegra”, contaocine-
astaJoãoPaulo Miranda.Nas-
cido em PortoFeliz, no interi-
or paulista,ehojeradicado na
França.Odiretor tímido aca-
baraderodaroúltimo plano
de “Casa de Antiguidades”,seu
primeirolonga,comroteirode-
senvolvidonumaresidência do
Festival de Canneseestreia pre-
vistaparaoano quevem.
Os críticos dovelhoconti-
nentetêmcertarazão no diag-
nóstico.“AMoçaque Dançou
comoDiabo”,curtaque rendeu
aMirandaoprêmio especial
dojúri na mostrafrancesahá
três anos,retratauma adoles-
centeevangélicaque setrans-
figuraemuma língua defogo
quando enfimcedeàlibido.
Destavez,éAntonioPitanga
que, aos 80 ,entranouniverso
fantásticododiretor.Ele inter-
pretaCristovam no filme, ope-
rário de umafábricadelaticí-
nios transferido para uma ci-
dadezinha fictícia decoloni-
zação austríacadosul do país.
Seus novoscolegas são lou-
ros, de olhos claros,ecaçoam
dele em alemão.Asparedes do
auditóriodafábricareprodu-
zemuma paisagem dos Alpes
que poderiaterservido dece-
nário para“ANoviçaRebelde”.


Desdeoiníciodeslocado
—um dos poucos negros em
meio aosoperários brancos,
sua primeirafalaemcena é
“fale português!”—,Cristo-
vamdescobrenacasa aban-
donada do título umrefúgio
dacomunidadelocal. Ao pas-
searpor seuscorredores escu-
rosevasculharseusmóveis,
cobertos de poeira, encontra
indícios de umavidaanteri-
or que acreditater sido sua.
Oprincipal deleséumaveste
típicadas cavalhadas,torneio
folclóricoemque cavaleiros ri-
camentetrajados batalham. A
cada peçaderoupa queCris-
tovamadotanodecorrerdo
filme—as botas,ouniforme
pretocom franjas,ocajado—,
caminhamaisemaisrumo a
um estado animalesco, einicia
umaguerracontra os demais
moradoresda cidade.
Ametamorfoseécomple-
ta comuma máscara depapel
machê emformadeboi, trazi-
da pelaprodução dePirenópo-
lis,emGoiás, onde aindaéfor-
te atradiçãodascavalhadas.
“CristovaméoBrasil,tentan-
do se encontrarnesseterritó-
riocontinental”,resumePitan-
ga.“Vocêperguntaaumma-
ranhense quem ele é,eele fa-
la como umcara no Rio deJa-
neiro, se vestecomo as pessoas
deSãoPaulo.Ele perde asre-
ferências dentrodecasa,éum

estrangeironopróprio país.
Para uma pessoa quetempou-
casinformações, que bichoes-
se cara podesetransformar?”
Oatorcalcula que“Casade
Antiguidades” seja seuprimei-
ro papel-título em um longade
ficçãoemquase quatro déca-
das.ComparandoMiranda à
GlauberRocha,com quemre-
alizoutítuloscomo “Barraven-
to”e“IdadedaTerra”,ele enxer-
ga em “CasadeAntiguidades”
uma alegoria sobreoracismo.
“NaBahia, 80 %dapopula-
çãoénegra[eparda].Ecadê
governador negro, prefeito,
bancada? Algumacoisa acon-
tece que nósvamos aceitando,
anestesiados”,diz.“Cristovam
écomotantos outros persona-
gens no Brasil.Esse gritoque
elerompe individualmente é
parte de um processomaior.”
Questionadoseessamesma
alegoria não pode ser encara-
da como discriminatória, uma
vezqueéjustamenteoseu
personagem, um negro, que
ébestializado,Pitangasorri.
Dizqueoestado primalaque
Cristovamretornaésobretu-
do mitológico. “NaÍndiaava-
ca éumanimal?”,retruca,re-
ferindo-seàposição sagrada
queela ocupanohinduísmo.
“Esse filmevaiser entendido
maravilhosamentebem lá.”
Aassociação quePitanga
traçaentreanarrativadeCris-

tovamereligiãonãoéàtoa. A
maneiracomo Miranda des-
creveseus filmes em muitos
momentos beiraomítico.
“Procuropôr natela coisas que
os espectadores acreditam
estarvendo,mas nãoestão ali
literalmente”,descreve. “Vo-
cê pressenteque há algoali.”
Daítambémvemaimpor-
tância que ele dá ao som, uma
característicaquecompar-
tilhacomocineastaKleber
MendonçaFilho,de“Bacurau”.
Mirandaexplica que, em “Ca-
sa de Antiguidades”, usou mi-
crofones de altafrequência, que
buscamtraduzir paraoouvido
humano sons audíveis apenas
por animais.“Nãogostoquan-
doosomcasa comaimagem”,
diz —mesmoque, destavez,
tenha ao seulado um diretor
defotografiaconhecido,Ben-
jamín Echazarreta,dovence-
dor do Oscar de filme estran-
geiro“Uma Mulher Fantástica”.
Oelementofaz partedasua
propostadeum“cinemacai-
pira”,que desenvolvedesde
os curtas da adolescência em
Rio Claro, acerca de duas ho-
rasdedistância deSãoPaulo.
Miranda defineoestiloco-
mooencontroentreavivência
do interiorcomofantástico.
“O que GuimarãesRosa fez
na literatura eu querofazer no
cinema. Penso nos meus per-
sonagenscomo épicos”,diz o

Estranhoemterra estranha


Aos 80 anos, Antonio Pitangaviveforasteiro que chegaaestado primitivoenfrentandoafúria de um


vilarejoracista nosuldopaís; filme marca estreia de diretorpaulistapremiado noFestival deCannes


cineasta.“À svezes,issosigni-
ficairalém das aparências e
remontarauma involução,
aanseiosquenão sãoracio-
nais.Épensar pelo estômago.”
Apesar da predileçãopelo
fantástico,Miranda nãovê
seus filmescomo parte da no-
vasafra doterror brasileiro.
Afirma que não se interesse
pela produção degênero, ao
contrário de MarcoDutra e
JulianaRojas, que em“A sBo-
as Maneiras”apresentam um
lobisomem paulistano,ouGa-
briela Amaral Almeida,que
em “O Animal Cordial”tam-
bém acompanhaaregressão
do protagonistaaumestado
de violência primitiva.
Comoeles,noentanto, o
longadeestreiadeMiranda
também encontranas metá-
forasuma maneiradeabor-
dar problemasreais do país
paraalém doracismo.
Afinal, dizodiretor,levou sua
equipeparaumredutobolso-
narista—acidadecatarinense
deTrezeTílias, que serviu de
base paraasfilmagens,regis-
trou no segundoturno mais de
3. 500 votosafavordocandida-
to doPSL, contracerca de 900
paraFernando Haddad (PT).
Um poucodessa polariza-
çãoapareceemcena.Onú-
mero 17 da sigla do presidente,
porexemplo,épichado ao la-
do de dizeresracistasnocasa-
rãovazio que Cristovam inva-
de.Abandeira do movimento
separatistaOSul ÉoMeuPaís,
formadapor Paraná, Rio Gran-
de do SuleSantaCatarina,é
acrescida do estado deSão
Paulo —pedido pessoal de Mi-
randa, segundoadiretorade
arteIsabelleBittencourt.
“O filmetemque trazercoi-
sas que provocam, nãoéen-
tretenimento”,diz Miranda.
Ajornalistaviajo uaconvitedaprodução

Antonio Pitangaemcenas de ‘Casade Antiguidades’,longadeestreia de JoãoPaulo Miranda FotosCarlosEduardo Carvalho/Divulgação


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TerçA-FeirA,10DeSeTembroDe2 019 C1
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