Folha de São Paulo - 10.09.2019

(ff) #1

aeee


ilustrada


C6 Terça-Feira, 10 DeSeTembroDe2 019


Paracadarevolução,háuma
contrarrevolução.Ahistória


moderna, desde 1789 ,nosen-
sina isso.Por que motivoha-
veria de serdiferenteagora?
E, no entanto, há boas almas
que ainda se espantam. No Fi-
nancialTimes, JananGanesh
escrevesobreomaisrecente


showdeDaveChappelle para
aNetflix.Intitula-se “Sticks&
Stones” e, segundoocolunis-
ta,tem classificaçõesdiferen-
tesnositeRottenTomatoes.


Paraoscríticos profissionais,
amédia de aprovação é 33 %. Pa-
ra opúblicoemgeral, é 99 %. À
primeiravista, nada de origi-
nal:ahistória daarteépródiga
nessas discrepâncias degosto.
Oponto,porém,éque as di-
ferenças de opinião nãoex-
pressam apenas diferenças de
gosto. Apolítica, aqui,émais
importantedoqueaestética
porqueoshowdeDaveChap-
pelleéumexemploextremo
de politicamenteincorreto

em ação.Serápor isso que o
sucesso popularétãogrande?
Assisti ao show.Confir-
mo.Piadas sobreasvítimas
de Michael Jackson,acomu-
nidadeLGBTeaté os ameri-
canos(brancos) viciados em
opioidescumpremtodosos
parâmetros da transgressão.
Eoauditóriodelira.
Não porque as piadas são
boas (algumas são)mas por-
quetodaselas sãoexplicita-
mentetransgressivas.

Erainevitável. Quandofa-
lamosdepoliticamentecor-
reto,não estamosapenas
adefenderaimportância
da civilidade no tratosocial
—asboasmaneiras de quefa-
lavam as nossas avós.
Opoliticamentecorre-
to vaimais longe: pretende
vigiarepunirqualquerpala-
vra,expressão ou pensamen-
to que não esteja adequado a
umacartilha progressista
previamenteestabelecida por

um qualquercomitê.
Parasermos rigorosos,
opoliticamentecorretoéa
antítese da civilidade.Esta
emerge da interaçãolivreentre
sujeitosmorais livres—é,diga-
mos, umarelação horizontal.
Opoliticamentecorretose
exercepor pressãovertical: é
uma imposiçãocultural que
pretende transformarareali-
dadepela supressão,ounega-
ção, dessa mesmarealidade.
Nesse sentido, concordocom
ofilósofoAngelo Codevilla, da
Universidade deBoston, para
quemopoliticamentecorreto,
ao se apropriar da noção de
“hegemonia cultural” de Grams-
ci, naverdade atraiçoaamen-
sagem gramsciana.
Seéprecisoconquistar as
massas paraacausa darevo-
lução,éimportantenão de-
clarar guerraaos seus senti-
mentosepensamentos, de-
fendiaGramsci.Apersuasão
inteligente—emaquiavélica,
no duplosentido da palavra—
eramaisimportantedoque a
violência leninista. Gramsci sa-
bia que optarpelarevolução
abertateriacomoresultado a
contrarrevolução aberta.
Éessacontrarrevolução que
observamos nas democracias
doOcidente—em showsde
comédia ou na eleição de po-
pulistasvários. Atéporque os
estudos disponíveis, pelo me-
nos paraosEstadosUnidos, já
apontavam no mesmo sentido:
amaioria da populaçãode-
ploraopoliticamentecorreto.
FoiocientistapolíticoYas-
cha Mounk quem me chamou
aatenção para um desses estu-
dos,realizado pelaorganiza-
çãoMoreinCommon.Com o
título “HiddenTribes:AStudy

of America’sPolarizedLands-
cape” (tribos escondidas:um
estudodapaisagem america-
na polarizada),osnúmeros
são impressionantes.
Paracomeçar, 80 %dos ameri-
canos acreditam queopolitica-
mentecorretoéum problema.
Issoétransversal entre brancos
( 79 %),asiáticos ( 82 %), hispâni-
cos( 87 %), nativos americanos
( 88 %)enegros( 75 %). Mas não
só: se osconservadores devo-
toshipervalorizamoproblema
( 97 %), os liberais tradicionais
não lhe são indiferentes ( 61 %).
Por outraspalavras: opo-
liticamentecorretosó não é
um problema parauma “tri-
bo” emparticular—osativis-
tasprogressistas,ouseja, 8 %
da populaçãototal.
Deresto, etal como aponta-
do por Mounk, nãoéapenas
opoliticamentecorreto que os
americanos desprezam.Odis-
cursodeódiotambém preocu-
paamaioria ( 82 %).Sim,oexa-
to discurso queopoliticamen-
te corretodiz combater.Uma
contradição?
Não creio.Antesaconfirma-
çãodequeamaioriaémais
sensatadoqueaminoria ilu-
minada quetentareeducar
as massascomarrogância
ehostilidade.Aspessoasco-
muns, quando deixadas emli-
be rdade, tendemase afastar
dosextremos. Pelocontrário:
quando as pessoassão acos-
sadas porumdosextremos,
elasprocuramabrigoecom-
pensaçãonoextremooposto.
Seopoliticamentecorre-
tonãofosse percebidocomo
um problemareal,tenhoacer-
tezaque DaveChappelle ja-
maisteria 99 %deaprovação
nessesitedetomates podres.


  • João PereiraCoutinho


escritor,doutor em ciência política pelaUniversidade Católica Portuguesa


maioria das pessoasémais sensatadoqueaminoria quetentareeducarmassas


Pausepedras


Angelo Abu


|dom.DrauzioVarella, FernandaTorres |seg.Luiz Felipe Pondé |ter.João Pereira Coutinho |qua.MarceloCoelho |qui.Contardo Calligaris |sex.Djamila Ribeiro|sáb.Mario Sergio Conti


entrevista
Pierre lévy



  • Raphael Hernandes


sãopauloQuandoPierreLé-
vy, 63 ,começouaescrever so-
brecibercultura,ainternet era
mato.Ofilósofoédos pionei-
rosatratardarelação entre
sociedadeecomputador.Para
ele, as ciências humanas pre-
cisam passar por umarevolu-
ção, como passaram as natu-
rais,eatecnologiaéachave
paraatingirum“patamarmí-
nimo”.“Nashumanidades ain-
da estamos na Idade Média.”
“Emvezdedesenvolver má-
quinas inteligentes, devería-
mos usar oscomputadores pa-
ra nostornar maisinteligen-
tes”,diz.Ofilósofoquerreor-
ganizaroconhecimento.Tra-
balha numa linguagemque fa-
ria humanosconversaremcom
máquinas semointermédio
da programação.Em 2020 ,de-
velançar um livroexplican-
doagramáticadessa língua
(sem data eeditoradefinidos).
Lévy nasceunaTunísia, mas
desenvolveucarreiranaFran-
ça.Ele falou àFolhaantes de
vir ao Brasil,onde participa
doFronteiras do Pensamen-
to,emSalvador,nestaterça
( 10 ),comingressos esgotados.




Vivemosem um mundoco-
nectado.Oque issomudapa-**


ra asociedade? Achegadade
computadores,depois,ain-
ternet, osmartphoneepor aí
vai, transformamosistema de
comunicaçãodasociedade.
Emnosso novosistema de
comunicaçãotoda informa-
çãoéacessíveleonipresen-
te.Aspessoasestão interco-
nectadas,oqueéainda mais
importante.Etemosrobôs
capazes de automaticamen-
te transformar símbolos,co-
mofazertraduções oucálcu-
los estatísticos. Issoénovo.
Aconteceu em apenas 20 ou
30 anos.Émuito difícil pen-
sar no que serão as implica-
ções dessa mudançanaco-
municação,estamos só noco-
meçodessa nova civilização.

Oque éinteligênciacoletiva?
Éalgomuitovelho,deantes
da espécie humana.Abelhas
acumulammel parasi epa-
raacomunidade.Formigas
conseguem sinalizar onde es-
tãoascoisas boasparacomer.
Comunicação, coordenação e
colaboração entreanimaisso-
ciaiséfrequente. Issoéainda
maisforteentremamíferos e
primatas. Temos essa inteli-
gênciacoletiva, mastemos al-
goque os outros animais não
têm: linguagem.
Ela permiteque acumule-
mosconhecimentodegera-
çãoparageração,eserve para
criar novasformas decoorde-
narecooperar,maiscomple-

Tecnologia pode


tirar humanas


da Idade Média,


diz Pierre Lévy


Filósofoconvidadodo cicloFronteiras


do Pensamentoquer linguagem para


pessoasconversaremcommáquinas


xas do que no mundo animal.
Cadavezque somoscapa-
zesdefortalecer nossa habili-
dadelinguística, agora,coma
comunicaçãodigital,aumen-
tamosainteligênciacoletiva.
Équaseoopostodeinteli-
gênciaartificial.Nãosoucon-
tra, masoobjetivogeral de-
veria ser inteligênciacoletiva.
Há muitamemória emco-
mumàdisposição.Podemos
aumentá-la[comoconteúdo
disponível digitalmente]. Po-
demos aumentar nossa habi-
lidade decoordenarecola-
borar,por exemplo,pelo uso
deredessociais.Nãosópara
opúblicogeral,mas também
para empresas,governos.

Inteligênciacoletivaestá
amarradaàinternet? Abi-
bliotecaera aformaantiga de
memóriacoletiva.Ainternet
éanovaforma. Emvezdeter
palavrasescritas em papel,vo-
cê temcódigos quenão sãoto-
talmentemateriais, mas que
têmque estar em umcom-
putador em algumlugar.Fal-
ta habilidadeeeducação pa-
ra tiraromelhor disso.

Eoqueseriatiraromelhor
dessas possibilidades? Você
temdeaprenderacontrolar
ougerenciaraatenção.Pre-
cisa podercategorizardados
corretamente,avaliaracon-
fiançaque pode darafontes
de informação,ser capaz de
comparar diferentesfontes.
Eaprenderasecomportar
numa inteligênciacoletiva
paratrabalharcomoutros a
fim de transformartodoses-
sesdadosemconhecimento.

Eonde entraobig data? Éa
nova forma de memória. Ho-
je,temostodaarealidadere-
presentada porummar de da-
dos.Tudogeradados. Agora,
háoproblemadeoquefare-
moscomissoecomoextraí-
mosconhecimentoútil deles.
Eétodaametodologiacien-
tíficaque está em jogoaqui.
Nãoacho queaestatísticaso-
zinha sejaoqueagentepreci-
se.Precisamoscategorizarto-
dos os dados,comhipóteses,
modeloscausaiseestatística
paratestar nossas hipóteses.

Éumareproduçãodométo-
do científico, masparatodos.É
só ocomeço da transformação
de dadosemconhecimento.

Eondealinguagem artifici-
al IEML (sigla em inglêspa-
ra MetalinguagemdaEcono-
miadaInformação)seencai-
xa? IEMLéuma língua, que
temacaracterísticadeter se-
mânticacomputável edeter
significadounívoco.
Hoje, os algoritmos sãoca-
pazes de entenderalingua-
gemnatural,mas sócomcál-
culos estatísticos. Com IEMLo
significadoéacessívelepode
serusadocomo sistema uni-
versal. Elefariaaanálise de big
data eaextraçãodeconheci-
mentodedados maisfácil do
que quando os dados estão
categorizadosemlinguagem
natural. Porquelínguas natu-
rais são irregularesediversas.

Uma linguagem parafazeraco-
nexão entre humanosemáqui-
nas? Exatamente.Criada pa-
ra ser umalinguagem que má-
quinas podem entender.Mas
pode ser traduzidaemlínguas
naturais paraque humanos
entendam,diferente de uma
linguagemde programação.
Agranderevolução científi-
ca que estánanossa frenteé
nas ciências humanas.Já fize-
mosarevolução das ciências
naturais, mas para as huma-
nidadesestamosnaIdade Mé-
dia.Ésópor meiodousodos
dados queestão disponíveis,
comtodoopodercomputa-
cionaleusandoferramentas
como IEML paracategorizar
os dados,eexpressarfatose
teorias deforma rigorosa,que
poderíamosalcançar um pa-
tamar mínimo no tratamento
científicodas humanidades.

Comoosr. vê ofuturodessa
sociedade digitaleconecta-
da? Duascoisasnão vãoacon-
tecer. Primeiro,todoproble-
ma serresolvidopelatecno-
logia. Isso nuncavai aconte-
cer. Sempre vãosurgir novos
problemas.Asegundaéque
robôs nãovãoassumiropo-
der.Ésimplesmenteimpossí-
vel. Nossa civilizaçãovaievo-
PierreLévyemPorto Alegre Luiz Munhoz/Recorte do Olhar-27.jun.16/Folhapress luir deformadifícil de prever.
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