Público - 10.09.2019

(C. Jardin) #1

14 • Público • Terça-feira, 10 de Setembro de 2019


SOCIEDADE


FERNANDO VELUDO

Recusa de novos fármacos. Ordem


quer responsabilizar peritos


Médicos denunciam atrasos na aprovação de fármacos inovadores

O Conselho Nacional da Ordem dos
Médicos (OM) defende que se deve
“responsabilizar directamente, com
casos concretos”, os peritos que “por
decisões que sejam erradas” impe-
çam os médicos de “preservar a vida
de doentes com cancro”. E apela aos
médicos que registem as recusas de
fármacos inovadores nos processos
clínicos, validando a proposta avan-
çada pelo colégio da especialidade de
Oncologia da OM, que em Julho
enviou uma carta ao bastonário a
denunciar o problema.
Foi depois de a missiva - que denun-
ciava limitações no Serviço Nacional
de Saúde (SNS) no acesso a medica-
mentos inovadores que podem ser
usados em fases mais precoces de
alguns cancros - ter sido divulgada
pelo Expresso no sábado que o Con-
selho Nacional da OM marcou uma
reunião extraordinária para analisar
a situação. E os moldes em que se
decidiu pronunciar, em comunicado
hoje divulgado, são muito duros:
negar o acesso a medicamentos “com
efeito comprovado” na redução de
risco de reaparecimento de cancro ou
no aumento da probabilidade de
sobrevivência é “uma situação muito
grave”, ainda mais quando a terapêu-
tica “está livremente disponível para
uso no sector privado e social”.
Em causa estarão vários medica-
mentos para o tratamento de cancros
do pulmão, próstata, mama e mela-
noma. São fármacos já usados em
casos de cancro metastizado (espa-
lhado por outros órgãos) e que terão
mostrado eÆcácia na redução do risco
de ressurgimento da doença e no
aumento de sobrevivência, se usados
em fases mais precoces.
No comunicado, a OM aÆrma ter
decidido “recomendar fortemente a
todos os médicos” que expliquem aos
doentes as melhores opções de trata-
mentos e a existência de limitações.
Mas vai mais longe e recomenda que
activem “de imediato” o Gabinete de
Apoio ao Acesso a Inovação Terapêu-
tica e Tecnológica da OM para “recla-
mar caso a caso” o acesso aos trata-


me o teor da carta com a denúncia,
porque os peritos da CATS conside-
ram que na fase inicial da doença não
há “risco imediato de vida”, mas ape-
nas “risco de vida”. Alguns destes
tratamentos são autorizados apenas
quando há metástases.
“Não tomamos esta decisão de âni-
mo leve e não está aqui em causa ape-
nas uma patologia, um produto ou
uma companhia [farmacêutica]”,
enfatizou Luís Costa ao PÚBLICO. “A
oncologia sempre viveu da possibili-
dade de fazer tratamentos numa fase
precoce para evitar metastizações”,
disse, sublinhando que os benefícios
não são marginais, ao contrário do
que aÆrmam alguns especialistas. O
risco relativo de reaparecimento nos
casos de melanoma com uma muta-
ção especíÆca é reduzido em 40%,
exempliÆca.
“Este problema é recorrente e é
preciso repensar a forma de funcio-
namento do Infarmed nestes casos”,
defende também o presidente do
Conselho Regional do Norte da OM,
António Araújo. O Infarmed “está a
obstaculizar imenso e a não deixar
registar doentes nos PAP - em que
tratamentos inovadores são disponi-
bilizados de forma gratuita durante
algum tempo pela indústria farma-
cêutica. Porquê? Porque estes permi-
tem a criação de grupos de doentes
que vão necessitar dos medicamentos
depois do Æm de programa e aí é o
SNS que paga, explica.
Quanto às autorizações excepcio-
nais, a avaliação muitas vezes não é
feita por peritos da área da especiali-
dade em causa, critica, sublinhando
que o “mais iníquo é que a ADSE até
agora Ænanciava todos, desde que
aprovados pela EMA”.
AOM recorda que no último relató-
rio de Primavera do Observatório dos
Sistemas de Saúde os especialistas
destacam que o tempo para acesso à
inovação terapêutica em geral em
Portugal é cinco vezes mais longo do
que o melhor resultado europeu no
período de 2015 a 2017. Enquanto a
Alemanha teve uma demora média
de 119 dias para a introdução no mer-
cado Portugal demorou 634 dias.

Doentes a quem for recusado o acesso a tratamentos inovadores que provaram ser eÄcazes em fases


precoces poderão, em teoria, avançar com processos contra peritos ou a autoridade do medicamento


Cancro


Alexandra Campos


e Ana Maia


[email protected]
[email protected]

mentos - que já foram validados pela
Agência Europeia do Medicamento
(EMA, na sigla em inglês).
São várias as barreiras no acesso
elencadas pela OM: além das comis-
sões de farmácia e terapêutica hospi-
talares — “que em diversos casos
retêm os pedidos de Autorização
Excepcional demasiado tempo” —, a
Comissão de Avaliação de Tecnologias
da Saúde (CATS) do Infarmed e
“outros ‘peritos’ deste regulador que
“muitas vezes não [são] especialistas
na área em questão”. Critica também
a direcção do Infarmed “que tem colo-
cado obstáculos à implementação de
Programas de Acesso Precoce [PAP]”
e demorado “tempo excessivo” na
avaliação custo-efectividade”.
“Os obstáculos colocados pelas bar-
reiras referidas e as decisões negativas
ou empatadas” têm “colocado vários
doentes em risco de vida”, sustentam
os responsáveis da OM. O presidente
do Infarmed, Rui Ivo, já respondeu,
alegando que estes são casos de medi-
camentos que ainda estão em avalia-
ção. Frisou ainda que as autorizações
de utilização excepcional são decidi-
das com base no parecer de peritos
médicos, muitos deles oncologistas
de hospitais do SNS, incluindo dos
institutos de oncologia.

“Perda de chance”
O registo no processo clínico dos
doentes das recusas pode ser um
trunfo importante, uma vez que habi-
lita o doente ou os seus familiares a
processar os responsáveis. Há uma
Ægura que é a da “perda de chance”,
lembra, a propósito, o director do
Programa Nacional para as Doenças
Oncológicas, José Dinis, que tem uma
posição “neutra” mas se mostra preo-
cupado com a situação. Existe nestes
casos uma “clara perda de oportuni-
dade”, corrobora o presidente do
colégio da especialidade de oncologia
da Ordem dos Médicos, Luís Costa.
Em 2015, um tribunal invocou pela
primeira vez a “perda de chance” de
sobrevivência de um doente para
condenar um hospital privado a pagar
uma indemnização por negligência.
Luís Costa frisa que o colégio de
oncologia, que é composto por médi-
cos dos três IPO e dos maiores hospi-
tais do país, aprovou de forma unâni-
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