Público - 10.09.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 10 de Setembro de 2019 • 31

CIÊNCIA


JEFFREY ANDREE/REINIER DE VRIES/KORKUT UYGUN

Preservação de fígados passa


de nove para 27 horas


Para conservar fígados fora do corpo durante 27 horas usou-se uma máquina de perfusão de uma solução

Por mais pequeno que seja, o aumen-
to do tempo de preservação de um
órgão fora do corpo humano pode ser
crucial para o sucesso de um trans-
plante. Agora, através de um novo
método, uma equipa de cientistas
triplicou o tempo de preservação de
fígados humanos no exterior do cor-
po relativamente ao que era feito no
uso clínico. De acordo com um estudo
publicado ontem na revista Nature
Biotechnology, conseguiu-se conser-
var esse órgão durante 27 horas, a
uma temperatura média de quatro
graus Celsius negativos. Falta conÆr-
mar estes resultados com mais expe-
riências, mas esta nova técnica pode
aumentar a disponibilidade de fíga-
dos para transplantação.
Em 1954, o médico Joseph Murray
fez o primeiro transplante de um
órgão humano (um rim) com sucesso
(o doente viveu alguns dias) e pelo seu
trabalho ligado à transplantação rece-
beu o Nobel da Medicina em 1990. Já
em Portugal, o primeiro transplante
de um ógão vital foi feito precisamen-
te há 50 anos (a 20 de Julho de 1969)
pelo cirurgião Linhares Furtado. Des-
de então, apesar dos desenvolvimen-
tos desta área, a transplantação con-
tinua a enfrentar limitações, como a
curta duração de preservação de
órgãos fora do corpo humano.
“O grande problema é que a actual
tecnologia preserva pouco tempo os
órgãos fora do corpo”, diz Reinier de
Vries, da Faculdade de Medicina de
Harvard (EUA) e primeiro autor do
estudo. “Actualmente, a transplanta-
ção é uma corrida contra o relógio.
Isto causa problemas logísticos que
resultam em órgãos descartados, por-
que, por vezes, o tempo se esgota.”
Em Portugal, no Ænal de 2018, esta-
vam na lista de espera para transplan-
te 2186 doentes, colheram-se 1042
órgãos e Æzeram-se 829 transplantes,
de acordo com os dados do Instituto
Português do Sangue e Transplanta-
ção (IPST). Enquanto estavam à espe-
ra de um órgão, 78 doentes morre-
ram. “Pelo facto de um doente ter
falecido em lista activa não signiÆca
que esta seja a causa do óbito; co-


fígado dos humanos é 200 vezes
maior do que o dos ratos.
Agora, a equipa de Reinier de Vries
usou o mesmo método em cinco fíga-
dos humanos. No que consiste? Pri-
meiro, têm de se aplicar no fígado
agentes protectores que combatem a
formação de gelo e protegem do frio
as células do órgão. Para homogenei-
zar esse “cocktail protector” a todo o
fígado, usa-se uma máquina de per-
fusão. Depois, ensaca-se e põe-se o
órgão num refrigerador a uma tem-
peratura média de quatro graus Cel-
sius negativos. Por Æm, removem-se
os sacos e o cocktail do fígado e “res-
gata-se” o órgão do armazenamento
através da máquina de perfusão.

A correspondência perfeita
Ao todo, preservaram-se então cinco
fígados durante 27 horas, a uma tem-
peratura média de quatro graus Cel-
sius negativos. “Pela primeira vez,
conseguimos mostrar a viabilidade da
preservação de órgãos humanos doa-
dos em temperaturas abaixo de zero”,
frisa Reinier de Vries. Mesmo assim,
o cientista refere que têm de ser feitas
mais experiências até que o método
chegue ao uso clínico.
Nos próximos tempos, o trabalho
da sua equipa passará mesmo por
transferir este método de preserva-
ção de fígados do laboratório para o
uso clínico. Em laboratório, também
já estão a aplicar este método em rins
e ovários. “Estamos entusiasmados
com os resultados preliminares nos
estudos com animais”, adianta.
“O tempo extra trazido pela técnica
poderá fazer a diferença entre o
sucesso e o fracasso de um transplan-
te de fígado”, considera Shannon
Tessier, também da Faculdade de
Medicina de Harvard e autora do tra-
balho. “Muitas vezes, quando um
órgão Æca disponível, não há uma boa
correspondência próxima [entre o
órgão e um doente]. Por isso, em ter-
mos de atribuição de um órgão, quan-
do temos mais tempo, pode-se pro-
curar a uma distância maior [esse
doente] e obter uma excelente cor-
respondência.” Com este método,
poderá, assim, haver mais órgãos
para transplantes.

Equipa internacional de cientistas conseguiu manter no exterior do corpo cinco fígados durante mais de


um dia, a uma temperatura média de quatro graus Celsius negativos


Transplantes


Teresa Sofia Serafim


[email protected]

torna o órgão inutilizável.
Em estudos anteriores, através de
um método de “superarrefecimento”
(como lhe chamam os autores), a
mesma equipa já tinha mostrado que
era possível preservar fígados de ratos
a seis graus Celsius negativos. “Este
método de superarrefecimento pode-
rá tornar-se exponencialmente mais
difícil quando o volume [do órgão]
aumenta, porque é mais difícil de
impedir a formação de gelo em tem-
peraturas abaixo de zero”, esclarece
Reinier de Vries. “Havia muitos espe-
cialistas que diziam: ‘Bem, isto é fan-
tástico para os ratinhos, mas não irá
funcionar em humanos.’” AÆnal, o

solução especial a cerca de quatro
graus Celsius. E, embora a duração
máxima nessa caixa fosse de menos
de 12 horas, no uso clínico a média era
de quase nove horas. Depois, os teci-
dos do órgão começavam a Æcar com
danos irreparáveis.

Um grande volume
Num comunicado sobre o trabalho na
Nature Biotechnology, destaca-se que,
com temperaturas abaixo de zero, os
órgãos podem sobreviver mais tem-
po. Mas, se os fígados congelarem,
poderão Æcar com grandes danos —
tal como acontece com as queimadu-
ras causadas pelo frio na pele —, o que

morbilidades associadas podem ser
relevantes”, salienta-se na resposta
enviada pelo IPST.
Quanto aos transplantes hepáticos,
em 2018 colheram-se em Portugal 266
fígados e Æzeram-se 232 transplantes.
Além disso, 18 doentes da lista de
espera morreram e 113 aguardavam
por um transplante hepático.
A equipa de Reinier de Vries pre-
tende melhorar este tipo de números
ao aumentar a duração da preserva-
ção de órgãos. Para isso, começou
por fazer experiências com fígados.
Até agora, a melhor preservação de
fígados fora do corpo humano era
feita numa caixa com gelo com uma
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