Público - 10.09.2019

(C. Jardin) #1

36 • Público • Terça-feira, 10 de Setembro de 2019


Um crítico famoso do século XIX,
Eduard Hanslick, dizia que não
devíamos deixar-nos levar por “emo-
ções patológicas”, mas antes defen-
der a “contemplação pura e cons-
ciente de uma obra musical”. Estava
em causa uma forma de pensar a
música, e também uma forma de a
escutar. Era preciso, dizia ele, reco-
nhecer na obra de arte “a sublime
indiferença do belo” e seguir um
concerto como um “meditar da fan-
tasia” e nunca como um puro ine-
briamento.
Vem isto a propósito do concerto
da tarde de domingo no Centro Cul-
tural de Belém, em Lisboa, onde a
Orquestra XXI concluiu a sua digres-
são deste início de Setembro, que
passou pelo Porto, por Cabeceiras
de Basto e por Oliveira do Bairro.
Um programa que foi “rodado” nes-
tes dias consecutivos de actuações
— e tem mesmo de assim ser, porque
esta orquestra reúne músicos por-
tugueses residentes no estrangeiro
que tocam noutros agrupamentos e
orquestras pelo mundo fora e que
têm de conciliar as suas agendas
com a da Orquestra XXI.
O concerto abriu com uma obra
de 2009 da compositora Ana Seara,
uma peça delicada que a orquestra
apresentou cuidadosamente. Tua
Lágrima em Mim, para orquestra de
câmara, não pede que choremos,
mas antes que contemplemos “cons-
cientemente” a gradual formação de
uma harmonia onde surgirão melo-
dias fugazes entre a Çauta e os violi-
nos, até que a marimba se torna o
instrumento central, quase um solis-
ta. A obra sabe a pouco, quando
parece lançar uma ideia que apete-
cia escutar a desenvolver-se ainda
mais, mas foi uma óptima abertura
para o programa que se lhe seguiu.
Viria depois o prato forte da noite,
com o Concerto n.º 1 em Mi bemol
maior, op. 107, de Schostakovich. Um
concerto de emoções violentas mas,
calma!, que a beleza deve ser com-
preendida e tudo isso deve ser sus-

pendido para se chegar à “sublime
indiferença”. Embora ninguém tives-
se Æcado indiferente, suspeito, peran-
te a actuação magníÆca de Pavel
Gomziakov, numa interpretação
extraordinária e pessoal, sem imita-
ções de nenhum Rostropovich (a
quem, aliás, o concerto foi dedicado).
ReÇexão íntima, tormento, melanco-
lia, poesia? Mesmo que puséssemos
tudo isso de lado, haveria razões para
apreciar neste concerto uma constru-
ção precisa de uma voz (o violoncelo)
no meio de muitas, quando por
exemplo as violas dialogam no segun-
do andamento de forma espantosa
com o violoncelo. A Orquestra XXI
conseguiu o equilíbrio certo com o
som de Pavel Gomziakov, um grande
violoncelista.
Neste concerto de Schostakovich,
há melodias que surgem como se
fossem memórias, há solos interro-
gativos, como que perguntando por
um lugar no mundo, de fortissimos
violentos e rápidos até ao mais ligei-
ro pianissimo. Virtuosismo quase
violento, não só pelo que exige tec-
nicamente ao intérprete solista e à
orquestra, mas pelo caminho formal
que a peça propõe, até ao quase,
quase, quase descarrilamento, mas
não, porque se conseguiu manter
nos carris no último andamento com
a excelente condução de Dinis Sou-
sa. Violento também emotivamente?
Não nos deixemos levar por isso,
que a música é só música, e vamos
tentar manter a sobriedade, como
propõe Hanslick. As cores da música
do compositor russo, mesmo se con-
têm ímpetos e arroubos, são as que
são: um amarelo é só aquele amare-

Crítica de música


Pavel Gomziakov e Orquestra XXI

Dir. musical: Dinis Sousa. Obras de
Ana Seara, Schostakovich e Brahms.
Lisboa. Centro Cultural de Belém —
Grande Auditório. 8/09, às 17h.

mmmmm


Pedro Boléo

Quando a música


é (quase) só música


DR

A Orquestra XXI conseguiu o equilíbrio certo com Pavel Gomziakov

lo metálico, junto daquele vermelho
das madeiras e dos contrabaixos,
com aqueles cinzentos e azuis da
Prússia quase descarrilando...
Aplauso grande e merecido para
Pavel Gomziakov e a Orquestra XXI.
E logo veio um encore oferecido pelo
violoncelista, na emocionante can-
ção popular catalã que Casals outro-
ra tocou (El Cant des Ocells, ou seja,
“o canto dos pássaros”). Não é a can-
ção que é emocionante, nós é que
nos emocionamos, desculpa lá,
Hanslick. Até porque o concerto
tinha uma dedicatória ao jovem
oboísta Samuel Bastos, membro da
orquestra falecido em Maio. Impos-
sível não tê-lo presente.
Depois do intervalo, a famosa
Quarta Sinfonia de Johannes
Brahms, grande amigo do nosso
Hanslick. Nada ali é inconveniente,
fora do lugar, tudo ali é justiÆcado,
como gostava o crítico, pela bela
arquitectura que faz o estilo do com-
positor. A Orquestra XXI, muito bem
dirigida por Dinis Sousa, sobretudo
na construção dinâmica da obra,
com um belíssimo segundo anda-
mento e um grande rigor na articu-
lação do terceiro. Mesmo no Ænal
“apassionato”, a orquestra mostrou
como Brahms é mestre da constru-
ção sem emoções exageradas. Obra
acabada de compor em 1885, num
“delicioso descanso veranil”, como
escreveu o compositor à sua íntima
amiga Clara Schumann, é apaixona-
da ma non troppo. Enérgica, viva,
romântica? Sim, mas a música é só
música, e já chega de palavras.

Artes


Tomás Marques Pereira


Obra do artista e activista


volta a Portugal: Entre a


Arte, o Activismo e a Moda


está no CascaiShopping e


tem entrada gratuita


[email protected]

Entre a Arte, o Activismo e a Moda,
que hoje chega ao CascaiShopping,
junta 17 peças de Keith Haring (1958-
1990) em homenagem a este artista
e activista das últimas décadas do
século XX, cuja linguagem gráÆca se
tornou praticamente um idioma uni-
versal (e que, em Portugal, foi alvo
de uma grande exposição em 2004,
na Culturgest). Seleccionadas a dedo
por Astrid Sauer, as obras preten-
dem reconstituir a singular iconogra-
Æa de Haring e abordar as questões
fracturantes que dominaram a sua
actividade nos anos 80, como “o
regime de Reagan, o racismo, a vio-
lência, e a sida [que o vitimou]”,
explicou a curadora ao PÚBLICO.
Em 1978, Keith Haring deixava
para trás a escola proÆssional de
artes da sua terra natal para mergu-
lhar na fervilhante comunidade artís-
tica nova-iorquina. Ali, a arte estava
disposta a desligar-se das institui-
ções, das galerias e dos museus para
ocupar a rua, o metro e as discote-
cas, recorrendo a técnicas como o
graffiti e a outros formatos gráÆcos e
performativos inovadores. Inspirado
pelos seus contemporâneos, Haring
dedicou a sua carreira à criação de
uma arte verdadeiramente pública,
materializando impulsos juvenis em
padrões caricaturais que davam pri-
mazia à linha, a sua inconfundível
assinatura. A partir de 1982, o reco-
nhecimento projectou-o para as
grandes galerias internacionais, dan-
do início a uma fase áurea de criati-
vidade artística à qual esta curadoria
pretende dar especial ênfase.
O próprio espaço que as obras
escolhidas agora ocupam quer evo-
car as ideias do artista: a exposição
inspira-se na icónica Pop Shop, a pri-
meira loja de artigos artísticos — con-
siderada uma extensão do seu traba-
lho — que Keith Haring abriu em
Manhattan em 1986. “A Pop Shop,
criticada como uma maneira de fazer
mais dinheiro, é, pelo contrário, uma
maneira de tornar as suas obras aces-
síveis a um maior número de pes-


Keith Haring sai à


rua (e entra no


centro comercial)


em Cascais


soas”, aÆrma Astrid Sauer, subli-
nhando que Keith Haring é o “pai do
merchandising artístico”. Na linha
das ideias de democratização que o
artista promoveu ao longo da vida,
Entre a Arte, o Activismo e a Moda
procurou espaços públicos, levando
a arte à rua, ao encontro das pessoas.
Além das 17 obras que até 10 de
Novembro podem ser vistas gratui-
tamente no CascaiShopping, a esta-
ção de comboios de Cascais foi rede-
corada com imagens alusivas ao
trabalho de Haring e uma carruagem
intervencionada por AkaCorleone
irá circular naquela linha.
As relações do artista com o mun-
do da moda também constituem um
dos eixos da exposição. Keith
Haring colaborou com ícones como
Madonna, Grace Jones ou Vivienne
Westwood, e inÇuenciou marcas
como a Coach e a Lacoste. Para expli-
citar essa ligação, estarão expostas
criações de designers inspirados nos
simbólicos padrões e bonecos
de Haring. A peça mais notável é a
réplica do vestuário que Haring fez
para Madonna, e que esta usou no
aniversário do artista em 1984. O cria-
dor de moda Dino Alves é o porta-voz
da secção de moda da exposição.
A inauguração de Entre a Arte, o
Activismo e a Moda terá ainda um
evento inédito de live body painting
com a modelo Sharam Diniz, evoca-
ção da performance de Grace Jones,
que em 1987 se deixou pintar por
Keith Haring. Texto editado por
Inês Nadais

A linguagem gráfica de Keith
Haring é inconfundível

CULTURA

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