Público - 10.09.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 10 de Setembro de 2019 • 37

INICIATIVAS


“A Vida Sexual” de Egas Moniz


Egas Moniz, conhecido por ter
ganho o Prémio Nobel da Medicina,
único português a recebê-lo no
campo das Ciências, é uma Ægura
fascinante pela pluralidade das suas
aptidões.
A sua atividade como médico e
investigador deu origem à
publicação de 16 livros, 278
monograÆas e 52 conferências. Na
coleção Médicos Escritores, que o
PÚBLICO em boa hora vai lançar,
constam alguns amigos pessoais de
Egas: Júlio Dantas, Miguel
Bombarda, Abel Salazar e Brito
Camacho.
No início, A Vida Sexual era
composta por dois volumes: o

primeiro, intitulado A Vida Sexual I
(Fisiologia), foi a sua tese de
doutoramento; o segundo volume
intitulava-se de A Vida Sexual II
(Patologia). Os dois volumes
passam a ser um só, em 1913,
tendo, no total, 19 edições. Para
um país, à época, de analfabetos, é
notável. E por que parou na 19.ª?
Porque a sua venda foi proibida
pelo Governo de Salazar e, não sei
se é mito urbano, dizem que a sua
consulta em bibliotecas só era
possível com receita médica.
Quais os objetivos de Egas Moniz
com este livro? Di-lo no prólogo da
segunda edição de A Vida Sexual II
(Patologia), em 1906: primeiro,
satisfazer as exigências para o seu
doutoramento e para a admissão
ao professorado e, segundo, para
que os colegas e pessoas cultas
compreendessem que “a
exposição das misérias sexuais só
pode incitar à compaixão e
diminuir a repulsa para actos que

se denominam de devassos,
quando não passam de fenómenos
patológicos”.
Costumava dizer aos meus
alunos que, em Ciência, as
verdades de hoje podem ser as
mentiras de amanhã, mas há que
manter a curiosidade cientíÆca
suÆciente para se gerarem novas
verdades. Desde meados do séc.
XIX, devido à evolução das
ciências biológicas,
estabeleceram-se novos conceitos
sobre a sexualidade, por mentores
como Paolo Mantegazza,
Kraèt-Ebing, Auguste Forel,
Sigmund Freud, Havelock Ellis,
Albert Moll e Magnus Hirschefeld.
Esta evolução dos conhecimentos
Æsiológicos implicou uma nova
perspetiva sobre alguns
comportamentos sexuais,
substituindo os conceitos religiosos
e morais por uma patologização
dos atos sexuais, colocando-os no
âmbito da Medicina. A

patologização levou, por exemplo,
a que a homossexualidade fosse
considerada doença.
A descrição dos vários
comportamentos sexuais é muito
rica; cita trabalhos de muitos
autores, contradizendo-os e
interrogando-os, e tem o mérito de
dar as suas opiniões e a sua
experiência. O autor, em
determinadas situações, é muito
conservador, moralista e
adjetivador, mas, noutras, defende
posições muito avançadas para o
seu tempo.
Este livro, como qualquer ser
vivo, sofre os efeitos da anciania,
mas, como representante de um
tempo e das suas ideias, passa a
testemunho histórico, de valor
incalculável, para quem, por estas
matérias, se interessa.

Médico endocrinologista,
ex-presidente da Sociedade
Portuguesa de Sexologia Clínica

No âmbito do seu 80.º aniversário a Ordem dos Médicos, o PÚBLICO e a Bela e o


Monstro homenageiam 14 médicos que se destacaram também como escritores:


Egas Moniz, Fernando Namora, Jaime Cortesão, Leite de Vasconcelos, Bernardo


Santareno, Fialho de Almeida, Júlio Dantas, Brito Camacho, Miguel Torga, Júlio Dinis,


Graça Pina de Morais, João de Araújo Correia, Abel Salazar e Miguel Bombarda.


17 de Setembro
A vida sexual Egas Moniz
24 de Setembro
Memórias da Grande Guerra
Jaime Cortesão
01 de Outubro
Nos Mares do Fim do Mundo
Bernardo Santareno
08 de Outubro
A Noite e a Madrugada
Fernando Namora
15 de Outubro
A barba em Portugal
Leite de Vasconcelos
22 de Outubro
O País das Uvas
Fialho de Almeida
29 de Outubro
Eterno Feminino Júlio Dantas
05 de Novembro
As pupilas do Sr. Reitor
Júlio Dinis
12 de Novembro
Por ahi fora Brito Camacho
19 de Novembro
Vindima Miguel Torga
26 de Novembro
O delírio do ciúme
Miguel Bombarda
3 de Dezembro
Na luz do fim Graça Pina
de Morais
10 de Dezembro
Um estio na Alemanha
Abel Salazar
17 de Dezembro
Contos Durienses
João de Araújo Correia


Para lá do erro e preconceito


A tese que Egas Moniz escreveu aos
27 anos, contra a opinião dos seus
mestres, em termos cientíÆcos,
envelheceu mal; despertaria
sorrisos incrédulos dos mais novos,
que nunca a conheceram
clandestina.
E, no entanto... Assim como
algum feminismo estudou a obra de
Freud, não pelo seu carácter
prescritivo, mas descritivo, também
o “perigoso” Egas Moniz nos
permite um olhar privilegiado sobre
o horizonte cientíÆco e cultural do
início do século XX.
No prefácio à décima edição, diz
ao que vem: “Esclarecer as camadas
cultas e satisfazer curiosidades

legítimas, tudo em linguagem
acessível.” Alguns dos
“esclarecimentos” fazem–nos
estremecer? Sim. A adesão às
teorias eugénicas e da
degenerescência choca, mas não
surpreende. Na Inglaterra e nos
Estados Unidos, não faltaram vozes
cientíÆcas saudando as primeiras
medidas a esse nível tomadas pelo
regime nazi. Neste quadro, a sua
“escandalosa” defesa da
contracepção não visava a melhoria
da condição feminina, mas da
qualidade da espécie.
Um evidente duplo padrão
permeia o pensamento de Egas
Moniz? Sim, ouçamo-lo: “O homem
é essencialmente sexual, a mulher é
essencialmente mãe. Tudo o que se
afaste disso é anormal”. Aliás, em
termos de prevenção, é bom não
esquecer que a Ærme defesa de um
ensino misto por parte de Egas
Moniz visava o desenvolvimento da
heterossexualidade. Normal...

A patologização da
homossexualidade é defendida, ao
arrepio do pensamento de Freud e
do Kraèt-Ebing tardio? Sim, de um
modo que crismaríamos hilariante
se não fosse trágico. AÆnal, uma das
estratégias diagnósticas
preconizadas era a simples atenção
— o olhar do homossexual
quedava-se hipnotizado pelas calças
dos médicos assistentes! Para não
falarmos das alterações físicas e
psicológicas que o caracterizariam.
Como, de resto, acontecia aos
onanistas, pelo que a juventude
necessitava de exercício e
alimentação saudável. E as raparigas
deviam evitar o uso de máquinas de
costura, sendo aconselhável que os
selins das suas bicicletas
obedecessem a formas não passíveis
de as estimular!
Mas uma só frase justiÆcaria olhar
envergonhado e um pedido de
desculpas, se o velho senhor nos
pedisse contas: “E como estes

assuntos andam, em regra, alheados
do ensino médico, vim trazer alguns
ensinamentos àqueles proÆssionais
que não andam ao facto da literatura
que respeita ao assunto”.
Hoje, tanto os proÆssionais como
o público continuam órfãos da
informação/formação a que têm
direito, o progresso tem sido
demasiado lento. É fácil decretar
muitas das certezas de Egas Moniz
risíveis, conservadoras; inúteis. Ele
não se importaria de as ver
questionadas e mesmo destruídas,
fundamental era ter proÆssionais
aptos a ajudarem quem precisa.
Acredito que a sua ( justiÆcada)
preocupação foi aliviada por
rapariguinha que conhecera numa
estação de comboios. Guardava na
mesa-de-cabeceira os poemas de
Rosalía de Castro e fez da Casa do
Marinheiro cenário de bela estória
de amor.

Médico psiquiatra e sexólogo

FOI RESPEITADA A OPÇÃO ORTOGRÁFICA DOS AUTORES.

Júlio Machado Vaz


António Santinho Martins

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